O programa Caminhos da Reportagem percorre a Pequena África Carioca, localizada na zona portuária do Rio de Janeiro. Batizada assim pelo compositor e artista plástico Heitor dos Prazeres, a região guarda a memória dos diferentes povos africanos que vieram para o Brasil e dos seus descendentes, que criaram espaços de resistência a partir da solidariedade, da religião e da música.
O marco zero desta história é o Cais do Valongo, que foi o principal porto de desembarque de africanos escravizados nas Américas, reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 2017 como Patrimônio Cultural da Humanidade. Por ali chegaram até um milhão de pessoas escravizadas.
“Esse lugar tanto nos permite conhecer uma parte muito importante da história do país, como nos permite entender o presente e, construindo uma consciência, pensar um futuro em que não se perpetue essa desigualdade, que, no caso brasileiro, é fortemente marcada pelo dado racial”, afirma a professora de História da África na Universidade Federal do Rio de Janeiro Monica Lima.
Todo o complexo escravista da Colônia e do Império de 1774 a 1831 funcionou na região. Ao fazer uma obra na casa em 1996, a família Guimarães descobriu que morava em cima do cemitério dos Pretos Novos, onde eram enterrados os africanos que morriam antes de serem comercializados. A partir da descoberta, Merced Guimarães criou o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), que mantém um museu, oferece oficinas e promove pesquisas. “Antes de achar o cemitério, eu achava que o Brasil não era racista. Depois que a gente encontrou esse cemitério, a gente viu que é terrivelmente racista, conta Merced”.
As pesquisas dos arqueólogos mostraram que os corpos eram jogados de qualquer maneira, tinham os ossos triturados, sem respeito pelos mortos. “É uma prova física, material de que a escravidão foi um crime contra a humanidade e que precisa de reparação”, afirma o historiador Claudio Honorato.
O IPN realiza circuitos guiados pelo território pelo menos duas vezes por semana, que no ano passado reuniram um total de 15 mil visitantes. Várias agências de turismo também oferecem o passeio. “Muita gente não faz ideia do que aconteceu aqui”, observa o turismólogo Rafael Moraes.
Descendentes
Após a abolição, descendentes de africanos continuaram chegando à região para trabalhar no porto, principalmente do interior do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e da Bahia. Os estivadores guardavam o sal nos trapiches aos pés da famosa Pedra do Sal, onde também se reuniam para trocar ideias e fazer música. O músico e geógrafo Walmir Pimentel considera a Pedra do Sal “o grande coração musical dessa chamada Pequena África”.
É também um local sagrado para as religiões de matriz africana, onde passaram a ser feitos rituais desde os primeiros terreiros de candomblé instalados na região. Músicos como João da Baiana, Pixinguinha, Donga e Heitor dos Prazeres moraram nos becos ao redor da Pedra e frequentaram também a casa da Tia Ciata, mãe de santo e quituteira, cujas festas foram fundamentais para o florescimento do samba carioca.
A bisneta de Tia Ciata, Gracy Mary Moreira, se dedica à preservação do legado familiar. Criou a Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata, que organiza rodas de samba, cortejos e blocos de Carnaval, entre outras atividades, “para mostrar o quanto o negro é poderoso, o quanto pretas e pretos fazem um trabalho maravilhoso. Tristeza todo mundo já conhece, mas não conhece a potência dessas pessoas na história do nosso Brasil”, diz Gracy.
Desde as obras de revitalização do porto, em 2011, empreendimentos imobiliários vêm sendo lançados na região. O território despontou como destino turístico e de lazer dos cariocas. Os restaurantes no Largo de São Francisco da Prainha são citados em revistas internacionais. A Roda de Samba da Pedra do Sal, que acontece toda segunda-feira, chega a reunir dez mil pessoas em feriados, de acordo com Pimentel, que é um dos organizadores do evento.
Para vários ativistas da região, entre eles o presidente do afoxé Filhos de Gandhi do Rio de Janeiro, Célio Oliveira, a gentrificação afeta os moradores. “A resistência está brigando para que a questão imobiliária não chegue aqui para dar um apagão novamente na história”. O afoxé foi criado na cidade em 1951 pela família Encarnação, que participou da fundação do Filhos de Gandhi em Salvador dois anos antes.
O descaso com os pontos de memória da Pequena África foi denunciado em ações de procuradores e defensores públicos contra a administração municipal e federal nos governos anteriores. Com a mudança nos rumos da política, o território ganhou visibilidade e o compromisso de preservação do patrimônio afro-brasileiro. Vários entrevistados do programa foram convidados a integrar o Comitê Gestor do Valongo, um órgão que monitora as ações no território e foi reativado em março.
“Eu acho que o cenário é positivo, é de desenvolvimento, é de potencialização de todos os lados. A gente tem todo um movimento negro contemporâneo olhando aqui para essa região, não só da cidade, mas do estado e do Brasil”, avalia Sinara Rúbia, diretora do Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira, o Muhcab.