A palavra goat (bode, em português) representa também uma sigla em inglês para greatest of all time (o melhor de todos os tempos). Em várias postagens que homenageiam Dirceu José Pinto nas redes sociais, a menção à sigla – o emoji de um bode – ou, simplesmente, o carinho de atletas, brasileiros e estrangeiros, independente da modalidade, mostram o tamanho do paulista da cidade de Francisco Morato, não só para a bocha, como também para o paradesporto como um todo. O falecimento dele na última quarta-feira (1º), aos 39 anos, em decorrência de uma insuficiência cardíaca, mexeu com o movimento paralímpico. O problema cardíaco que vitimou Dirceu ocorreu devido ao processo degenerativo de sua doença: uma distrofia na região da cintura, que atingia a coxa e o abdômen.
Não são “apenas” as cinco medalhas paralímpicas, quatro delas de ouro – duas em simples e duas em pares nos Jogos de Pequim (China) e Londres (Reino Unido) – e uma de prata (equipes) na Rio 2016. Conquistas, aliás, que fazem dele o maior nome da bocha em Paralimpíadas. O legado de Dirceu foi além dos resultados. “Ele transformou a vida de muita gente”, afirma a técnica Ana Carolina Lemos Alves. “Ele usou a visibilidade que tinha para que mais pessoas com deficiência pudessem ser vistas de outra forma, e terem dignidade”, completa a treinadora, que trabalhou com Dirceu dentro e fora da seleção, uma amizade de quase 20 anos.
Ela faz referência ao projeto Mogi Paralímpico, em Mogi das Cruzes (SP), do qual o medalhista era coordenador. A iniciativa atende a mais de 400 pessoas com deficiência. “É um projeto que tira essas pessoas de dentro de casa e as reintegra à sociedade, animando elas a estudar, fazer universidade e entrar no mercado de trabalho. É o deficiente saindo de casa, estudando e se capacitando para ajudar outro deficiente”, explicou Dirceu em entrevista ao repórter Juliano Justo em 2015, em reportagem exibida no telejornal Repórter Brasil, da TV Brasil. Ou seja: a formação de “novos Dirceus” para a vida.
Dirceu já deixa saudade. Seja para iniciantes, que se apegaram em seus conselhos para seguir a vida dentro e fora do esporte. Seja para amigos e companheiros de estrada, como Eliseu dos Santos, o grande parceiro nas quadras. Juntos, ganharam diversos títulos em dupla, incluindo duas medalhas de ouro paralímpicas, além de uma prata ao lado de Marcelo, irmão de Eliseu, na disputa por equipes na Rio 2016. “Um amigo meu, técnico da seleção portuguesa, falou uma vez sobre eles: ‘não tinha como os dois brasileiros (Dirceu e Eliseu) não serem campeões, eles simplesmente não erravam’. Era muita sincronia e amizade”, recorda Ana Carolina.
“Conheci o Dirceu em 2005, mas só viemos a jogar juntos em 2007. Em todo esse tempo de convivência, sempre nos demos muito bem. Eu sempre falei que ele era um irmão e vai continuar sendo assim. O que eu levo era alegria que nós tínhamos, o respeito, a confiança e a admiração que sentíamos um pelo outro, tanto dentro das quadras como fora”, conta Eliseu.
Para entender melhor quem foi Dirceu, a coluna conversou com quatro parceiros de quadra do ídolo, que deram depoimentos emocionantes sobre um dos nomes mais importantes do paradesporto brasileiro na história.
Ana Carolina Lemos Alves, técnica da seleção
“Conheci o Dirceu em 2001, quando ele foi apresentado à bocha. Eu fazia parte da comissão técnica da primeira equipe dele, ainda como estudante de Educação Física. Quem o descobriu foi o professor Ronaldo Oliveira, que o convidou. No primeiro momento, ele não quis, achou que era mais uma terapia da fisioterapia e que não adiantaria para o que ele vinha manifestando (distrofia) desde os 12 anos. Mas ele não quis ser grosso com o Ronaldo, então, foi conhecer. Nós explicamos a modalidade, que era de estratégia, e ele começou a gostar. Desde essa época, o Dirceu mostrava que era diferente. Você consegue lapidar uma pessoa para ser atleta, mas, o talento nasce com a pessoa. E ele sempre foi muito talentoso. Na época, as bolas eram todas muito duras e, com menos de um ano de treino, ele já percebia que a bola da categoria dele (que não utiliza calhas para o arremesso) precisava ser mais leve. Tempos depois, a gente viu que os fabricantes começaram a lançar bolas mais moles. Ou seja, ele era muito a frente do tempo dele.
Em 2005, antes da Copa América, o Dirceu passou por uma reclassificação (avaliação que define se o grau de deficiência do atleta é suficiente para integrá-lo ao movimento e em qual categoria) que o considerou inelegível. Ele estava bem preservado em relação à deficiência que tinha na comparação com jogadores da época. Lembro que foi um dia parecido como o da última quarta (1º). Só não foi pior porque, na ocasião, pude abraçá-lo, chorar junto. Então, ele perguntou ao classificador: ‘preciso piorar (da deficiência) para poder jogar?’. O cara respondeu: ‘é, mas, fica tranquilo que você ainda vai jogar’. O Dirceu parou todos os tratamentos que fazia por dois anos (para “acelerar” a distrofia). Nesse meio tempo, ele se isolou em casa. Sempre foi um cara de fé.
Lembro que em 2008, na preparação para os Jogos, fomos um tempo antes para Portugal. A gente ficou em uma associação que tem na cidade do Porto. O domingo era dia de folga e todo mundo de lá teve visita, menos um rapaz com paralisia cerebral. O Dirceu sugeriu: ‘vamos passar o domingo com ele?’ E o menino ficou muito feliz. Ele era só alegria com todo mundo, transbordava amor. Sou uma pessoa de muita sorte pela convivência e ter tanta história, tantos momentos, abraços e palavras trocadas. Quando foi campeão na primeira vez, ele pediu: ‘Não me trata diferente de ninguém. Não sou melhor do que ninguém por isso. O que hoje estou vivendo, outros podem viver também’.
A gente foi para os Jogos de Londres, em 2012. Passados quatro anos (do ouro em Pequim), eu achava que o jogo dele não estava tão apurado. Mas, ele ia lá e ganhava. Ele dizia: ‘Carol, eu não sei o porquê, mas Deus me dá a vitória no final e falou que vou ser campeão. E ele foi campeão de novo, individual e em dupla com o Eliseu. No fim dos Jogos, depois que o Dirceu falou com a imprensa e cumpriu todos os protocolos, ele me disse: ‘você não falou que queria ver um atleta seu ganhando dois ouros em uma Paralimpíada? Agora você viu’.
“Em 2017, recebi o convite para ser técnica da Seleção na classe BC-4 (atletas cadeirantes, cuja lesão é de origem não cerebral, que não recebem assistência nas partidas), que era a do Dirceu. Ele foi convocado para tudo até o fim de 2018. Mas, percebi que o rendimento dele tinha caído. Faltava alguma coisa. Não era o que o coração queria fazer, jamais queria ficar sem o Dirceu na equipe, mas o coração sente uma coisa e a razão leva a gente a outra. Mas, na presença de espírito, para o grupo, o Dirceu sempre transbordou. Tanto que todo mundo falava da vontade de ele ser como um coach, para juntar todos. Estavam vendo como fazer isso, mas veio a pandemia e o Dirceu não pôde esperar.”
Artur Cruz, presidente da Ande
“Quando o Dirceu começou a jogar, eu era árbitro de bocha. Em 2005, em Mar Del Plata (Argentina), onde ele foi considerado inelegível, a gente ficava andando pela cidade e eu conversava muito com ele, tentando ajudá-lo a esquecer. Logo em seguida, veio a estratégia dele de parar com tudo que fazia. Natação, fisioterapia… Todo mundo achava que era depressão. A gente não entendia a estratégia dele. Em 2007, em Vancouver, no Canadá, eu estava na delegação quando ele foi reclassificado. Parecia final de Copa do Mundo, todos na porta do consultório onde ele era examinado. Foi uma grande festa quando ele voltou para o jogo.
Em 2008, foi a primeira participação do Brasil na bocha em uma Paralimpíada. A delegação tinha Dirceu e Eliseu como atletas. O Eliseu é do Paraná e foi para a casa do Dirceu. Passaram um mês lá treinando. Chegando na China, a gente tinha pouco tempo para treinar, então achamos um espaço num porão da Vila Olímpica. Ninguém esperava (as conquistas brasileiras – ouro individual com Dirceu e em pares com Dirceu e Eliseu). Foi um resultado espetacular. Ter acompanhado ele nesses momentos marcantes me orgulha muito.”
Evelyn Oliveira, medalhista paralímpica
“Estamos todos impactos com a perda do Dirceu. Perda que digo no sentido da presença física, mas penso que o que ele construiu o torna imortal, de certa forma. Eu, sobretudo, perdi um grande amigo. Tenho dito que ele era meu farol. O cara que, quando as coisas estavam meio estranhas, colocava luz na minha estrada. É o que vou guardar. As palavras otimistas, mesmo quando tudo parecia perdido, dando esperança e um norte. Foi isso o que vi ele fazer na vida das pessoas. O legado dele fica e nossa missão é levar adiante essa história que ele deixou, mostrar às pessoas com e sem deficiência que tudo é possível. Aproveitar as oportunidades que Deus dá, como ele aproveitou e como eu pude aproveitar também. É o esporte como ferramenta de transformação de vida. Cabe a nós levar isso às próximas gerações”.