100 anos da BCG: como a vacina mudou história do combate à tuberculose

Os versos não eram o remédio, mas o desabafo: “Eu sei que vou morrer… dentro do meu peito /um mal terrível me devora a vida“. Em 6 de julho de 1871, Castro Alves, de apenas 24 anos, sucumbiu à tuberculose. A maior novidade no combate a essa doença respiratória, que acomete principalmente os pulmões, só surgiria 50 anos depois da morte do poeta baiano: a vacina. O imunizante foi fruto de uma longa pesquisa dos franceses Léon Calmette e Alphonse Guérin. Eles atenuaram uma bactéria, batizada de Bacilo de Calmette e Guérin (por isso, a sigla BCG), e anunciaram, naquele 1º de julho de 1921, uma forma de debelar o bacilo de Koch, causador da tuberculose.

“Foi uma grande vitória contra essa doença, que matava tanta gente no mundo inteiro e até hoje tem os mais vulneráveis como suas principais vítimas”, afirma a médica Dilene Nascimento, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e estudiosa da história das doenças no Brasil. Há registro de casos de tuberculose no Brasil desde o período de colônia. A doença é transmitida por inalação de gotículas contaminadas e eliminadas pela respiração, tosse ou espirro.

A pesquisadora explica que, mesmo antes da descoberta da vacina na França, o Brasil tinha iniciativas para tentar proteger a população deste mal. Uma delas foi a Liga Brasileira contra a Tuberculose, entidade civil composta por pesquisadores e intelectuais, e que se transformaria depois na Fundação Ataulpho de Paiva, no Rio de Janeiro, entidade filantrópica até hoje responsável por produzir a BCG no país. Aliás, no Brasil, o desenvolvimento da vacina deu-se, inicialmente, pela pesquisa do cientista Arlindo de Assis (1896-1966) depois que ele recebeu, em 1925, uma amostra da cepa do vírus in vitro para estudo.

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Sempre há cicatriz da vacina BCG? 

Estudo tenta desvendar relação entre a BCG e eventual proteção contra covid-19:

Em 1927, a fundação criou laboratórios e passou a seguir a instrução para priorizar a vacinação dos mais jovens e também os mais vulneráveis, afirma a professora Dilene Nascimento. A pesquisadora entende que essa vitória da ciência é fundamental hoje, por exemplo, para que os bebês brasileiros recebam, logo depois que nascem, essa vacina. “Tem grande eficácia contra formas graves da doença, como ocorrem, por exemplo, com a vacina contra a covid-19. Foi um grande aprendizado”. Até a década de 1970, a BCG também existia na modalidade oral. O medicamento produzido pela Fundação Ataulpho de Paiva foi reconhecido em 16 laboratórios certificados pela OMS e é considerado um dos mais imunogênicos do mundo. 

Nos próximos dias 8 e 9 de julho, a Fiocruz realiza evento de debate (confira programação) sobre o legado da vacina BCG, administrada gratuitamente em postos de saúde, para os programas de imunização no Brasil. Em entrevista à Agência Brasil, a pesquisadora conta a trajetória do combate à tuberculose no país, e qual o papel a vacina BCG desempenhou nesta história.

Agência Brasil: Qual era o contexto de busca por essa vacina? 
Dilene Nascimento: No final do século 19 e início dos anos 1900, a tuberculose matava mais do que qualquer outra doença. Não existia política pública para o controle da tuberculose, que é um doença endêmica. O desenvolvimento pode ser lento, mas leva à morte. É preciso contextualizar que o bacilo de Koch, apesar de contaminar qualquer pessoa, costuma levar ao óbito aqueles que estão em situação mais vulnerável, e com sistema imunológico comprometido. A vacina contra a tuberculose estava sendo exaustivamente procurada pelos cientistas. Inclusive, o próprio pesquisador Robert Koch, que descobriu o bacilo causador, anunciou também a tubercolina. Inicialmente, imaginava-se que poderia ser um remédio, mas, na verdade, demonstrou ser um teste para diagnosticar a doença. Foi um anúncio com muita pompa, mas chegou-se à conclusão que a tuberculina identificava a tuberculose, e não a tratava. Até que, em 1921, Léon Calmette e Alphonse Guérin proporcionaram a descoberta de uma vacina. Eles anunciaram na Academia Francesa de Medicina. Foi verificado que o imunizante era eficaz contra o agravamento da doença.

Ouça trecho da entrevista com a pesquisadora:

Agência Brasil: E qual era a realidade brasileira naquela época?
Dilene Nascimento: A situação era grave. Em 1900, foi criada, por médicos e intelectuais – principalmente do Rio de Janeiro – a Liga Brasileira contra a Tuberculose. Eles estavam preocupados com o alto índice de óbitos. O discurso, na época, era que o Brasil (que havia deixado de ser uma monarquia em 1889) estava entrando na modernidade e deveria abandonar o atraso do século 19. Foi essa liga que depois se transformou na Fundação Ataulpho de Paiva (entidade filantrópica até hoje responsável pela produção da vacina no Brasil).

Saiba mais sobre a história da tuberculose neste vídeo da Fundação Ataulpho de Paiva:

 

Agência Brasil: Onde ficavam as pessoas acometidas pela doença?
Dilene NascimentoNaquele começo de século 20, foram criados dispensários – um em 1902 e outro em 1911. Existia um tripé para o atendimento: o sanatório (lugar para ter repouso, higiene e alimentação), o dispensário (ambulatório com tratamento médico) e o preventório (lugar onde ficavam os filhos dos tuberculosos, onde as crianças tinham até a manutenção dos seus estudos). Existiam tentativas de criar setores separados dentro dos hospitais para quem tivesse com a tuberculose. As Santas Casas tinham essa iniciativa, por exemplo. Mas os óbitos continuaram altos.

Agência Brasil: E como se deu o desenvolvimento da vacina aqui no país? 
Dilene Nascimento: O pesquisador Arlindo de Assis, que era o cientista que trabalhava no Instituto Vital Brazil, recebeu a cepa inativada do vírus de um pesquisador uruguaio, para poder para desenvolver a vacina no Brasil. Isso ocorreu em 1925. Ele começou a desenvolver a vacina e fez uma articulação com a Liga Brasileira contra a Tuberculose, que era presidida por Ataupho de Paiva. A entidade resolveu assumir a aplicação das vacinas nos dispensários e nas escolas. O Arlindo de Assis, então, se transferiu para a entidade e passou a produzir a vacina BCG. A Liga entendeu que a prioridade deveria ser crianças e estudantes. Com a criação do Departamento de Saúde Pública, passou a existir uma política pública com relação à tuberculose. Foram produzidos cartazes. Na época, ainda eram realizadas cirurgias muito doloridas para tentar resolver a tuberculose, chamadas de pneumotórax. Não era tratamento simples.

Propaganda de divulgação da vacina BCG – Imagem: Acervo/Casa de Oswaldo Cruz

Ouça a explicação da pesquisadora sobre os públicos prioritários para receber a BCG: 

Agência Brasil: Por que a doença matava tanta gente?
Dilene Nascimento: As principais vítimas da doença são pessoas com sistema imunológico comprometido. As relações precárias de trabalho daquele início de século 20 também agravavam a situação. Além disso, condições de moradia também interferem para a disseminação da doença. Ao longo do século, houve melhora nas condições de vida e de trabalho. Em 1942, tivemos o primeiro remédio antibiótico para tratamento. Quatro anos depois, o Estado criou uma campanha nacional de combate à tuberculose e também de vacinação. Tinha orçamento, por exemplo, para criar sanatórios nas várias capitais brasileiras. Ainda na década de 1940, decretos legislativos passaram a obrigar a vacinação das crianças.

Cartaz da Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose, veiculado na década de 1920. Imagem: Acervo/Casa de Oswaldo Cruz

Agência Brasil: E hoje, as famílias podem solicitar a BCG assim que a criança nasce.
Dilene Nascimento: Essa é uma conquista. Desde 1976, existe essa obrigatoriedade. Todas as maternidades aplicam vacina BCG nas crianças recém-nascidas. O imunizante não impede 100% de se infectar com o bacilo, mas faz com que uma eventual evolução da doença ocorra de forma menos grave, como ocorre com as vacinas contra a covid de hoje em dia também. A vacina é indicada para crianças de 0 a 4 anos (de acordo com a Portaria nº 452, de 6 de dezembro de 1976, do Ministério da Saúde, o imunizante é obrigatório para menores de um ano).