Em meio a crise política, presidente do Haiti, Jovenel Moïse, é assassinado na residência oficial

Segundo jornal, assassinos teriam se passado por agentes da agência antidrogas dos EUA; sucessão é incerta e primeiro-ministro interino decreta estado de sítio

O Globo e agências internacionais

Jovenel Moïse, presidente do Haiti, durante discurso na Assembleia Geral da ONU, em 2018 Foto: TIMOTHY A. CLARY / AFP/27-9-2018

PORTO PRÍNCIPE — O presidente do Haiti, Jovenel Moïse, foi assassinado na madrugada desta quarta-feira, anunciou o primeiro-ministro interino, Claude Joseph, em um comunicado. Um grupo de homens armados teria invadido a residência oficial no bairro de Pelerin 5, em Porto Príncipe, atirando no presidente, agravando uma crise política que se prolonga há meses no país caribenho.

“Um grupo de indivíduos não identificados, alguns dos quais falavam em espanhol, atacou a residência privada do presidente da República (…) ferindo mortalmente o chefe de Estado”, diz a nota, afirmando que o incidente ocorreu por volta de 1h, horário local (2h, horário de Brasília). “Todas as medidas estão sendo tomadas para garantir a continuidade do Estado e proteger a nação.”

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Apesar da incerteza sobre a ordem sucessória, Joseph disse que assumiu as rédeas e declarou estado de sítio de duas semanas após uma reunião extraordinária do seu ministério. Ele pediu calma à população após o ato “desumano e bárbaro”, afirmando que a polícia e o Exército já têm o controle da situação — segundo a Reuters, era possível ouvir tiros por toda a capital após o ataque.

O primeiro-ministro Claude Joseph disse que o estado de sítio foi decido em reunião extraordinária do conselho de ministros. Mais cedo, em comunicado, havia sido anunciado o assassinato do presidente Juvenal Moïse

A primeira dama, Martine Moïse, também foi baleada e levada para receber os primeiros socorros em um hospital da região. Segundo o embaixador haitiano nos Estados Unidos, Bocchit Edmond, ela deverá ser transferida para receber tratamento em Miami e seu estado é crítico.

Os assassinos, segundo o jornal Miami Herald, que teve acesso a vídeos filmados na vizinhança da residência oficial, se passaram por agentes da agência antidrogas dos Estados Unidos, a DEA. Na gravação, é possível ouvir um homem com sotaque americano gritando em um megafone: “Operação da DEA. Todos se afastem”. Fontes no governo haitiano disseram ao veículo que se tratavam de mercenários sem vínculos com o órgão americano.

Também há relatos de que drones teriam sido usados, ao menos uma granada teria sido disparada, e homens vestidos de preto teriam sido vistos correndo pela região. Segundo uma fonte ouvida pelo GLOBO, as ruas de Porto Príncipe estão praticamente vazias, contrastando com sua vivacidade habitual, e a estrada que leva para o bairro de Pelerin foi bloqueada. O aeroporto da cidade foi fechado, funcionando apenas para voos diplomáticos.

Dúvidas sucessórias

A morte de Moïse, de 53 anos, cria um vácuo de poder no país mais pobre das Américas: Joseph, nomeado como premier interino em abril, nunca foi ratificado e, no início da semana, o presidente havia nomeado Ariel Henry para sucedê-lo — seu sétimo primeiro-ministro em quatro anos. O médico, no entanto, seria empossado apenas no fim desta semana.

Pela Constituição haitiana de 1987, caso o presidente fique impossibilitado de exercer suas funções, cabe ao presidente da Suprema Corte governar o país. O cargo, contudo, está vazio desde que seu antigo ocupante, René Sylvestre, morreu de Covid-19 no fim de junho.

Neste caso, a Carta prevê que a Assembleia Nacional emposse interinamente o membro mais idosos do tribunal, que lidera um autointitulado governo paralelo de oposição desde o início do ano. Além disso, o Parlamento foi dissolvido em janeiro de 2020 por Moïse, que governava por decreto desde então.

Resta apenas o Senado, com 10 membros eleitos pelo voto popular, e alguns setores discutem instalar seu líder, Joseph Lambert, como presidente interino. Segundo o Diário Oficial do país, no entanto, o controle do país ficará na mão de Joseph e de seu Gabinete até que uma nova eleição, em data ainda incerta, seja realizada.

Crise política

Desde o fim do ano passado, a oposição vinha exigindo a renúncia de Moïse, um empresário exportador de bananas que entrou na política. Segundo os críticos, seu mandato deveria ter terminado em 7 de fevereiro, exatos cinco anos após seu antecessor, Michel Martelly, deixar o cargo.

As eleições de 2015 deram a vitória a Moïse no primeiro turno, mas o voto foi anulado por denúncias de fraude. Após vencer um segundo pleito organizado no ano seguinte, Moïse tomou finalmente posse em 7 de fevereiro de 2017 — a seu ver, portanto, seu mandato só terminaria em fevereiro de 2022. Ele se recusou a deixar o poder, convocando novas eleições para 26 de setembro deste ano.

Junto com as eleições marcadas para daqui a dois meses, o presidente havia convocado um controverso referendo constitucional, com o objetivo de aprovar a elaboração de uma nova Constituição — a minuta do novo texto foi redigida por uma comissão especial nomeada pelo próprio presidente, sem a participação de nenhum setor importante da sociedade haitiana.

Em fevereiro, as autoridades anunciaram ter frustrado uma “tentativa de golpe”. Na época, 23 pessoas foram presas, entre eles um juiz da Suprema Corte e a inspetora geral da Polícia Nacional. A oposição negou qualquer intenção golpista, afirmando que pleiteava apenas um governo de transição.

Histórico de instabilidade

Mais recentemente, a violência no país atingiu “níveis sem precedentes”, segundo a ONU. Na semana passada, em um ataque coordenado, pelo menos 20 pessoas, entre elas importantes figuras da oposição, foram mortas em Porto Príncipe. Agravando ainda mais a situação, o país não vacinou até agora nenhum de seus 11,26 milhões de habitantes contra a Covid-19.

Um relatório do Unicef (Fundo da ONU para a Infância) publicado há duas semanas estima que existam hoje 95 gangues armadas que controlam grandes territórios da capital, ou cerca de um terço de Porto Príncipe. Opositores do governo acusavam Moïse de se aproveitar das gangues para permanecer no poder.

O presidente americano, Joe Biden, chamou o episódio de um “crime hediondo” e disse que os EUA, a potência mais influente no país, continuarão a trabalhar por um Haiti “mais seguro”. A vizinha República Dominicana, por sua vez, anunciou o fechamento imediato das fronteiras com o Haiti e convocou uma reunião de suas lideranças militares.

O Haiti tem um histórico de turbulência e violência política, além de intervenções estrangeiras — os EUA ocuparam o país de 1915 a 1943. Depois de quase 30 anos da ditadura da dinastia Duvalier, entre 1957 e 1986, o país elegeu o ex-padre católico Jean-Bertrand Aristide, deposto dois anos depois em um golpe militar. Reeleito em 1994 e 2001, Aristide acabou fugindo do país em 2004, em meio a confrontos entre seus apoiadores e ex-militares do Exército que havia sido desmantelado após o fim da ditadura, junto com a força paramilitar dos Duvalier, conhecida como Tonton Macoute.

A fuga deu início à intervenção dos capacetes azuis da ONU, sob comando de forças brasileiras. A força de paz, que teve vários formatos, permaneceu no país até 2019, sem conseguir legar uma situação estável, cenário que foi agravado pelo terremoto de 2010, quando mais de 100 mil pessoas morreram.

Fonte: O Globo