Fake news na eleição presidencial: as respostas do Judiciário foram suficientes?

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Em entrevista coletiva a jornalistas após o primeiro turno das eleições de 2022, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, afirmou que “as fake news não tiveram influência” no primeiro turno das eleições de 2022 devido à agilidade com que a Justiça Eleitoral julgou as ações que envolviam desinformação, fake news e discurso de ódio. 

Na ocasião, não ficou claro para o grupo jornalistas, observadores internacionais, eleitoralistas e membros partidários presentes se o ministro realmente acreditava no que dizia ou se era preciso demonstrar certa confiança diante de um descontrole futuro. Quando Moraes soltou essa frase, a essa altura, a preocupação maior do TSE e de especialistas era com a desinformação e os ataques às urnas eletrônicas.

O principal alerta veio com o evento do presidente Jair Bolsonaro (PL) com embaixadores descredibilizando o sistema eletrônico de votação brasileiro, no dia 18 de julho de 2022 — antes mesmo do início da campanha marcada para 16 de agosto — e as investidas das Forças Armadas com uma série de questionamentos sobre as urnas. A preocupação era com o uso da própria estrutura da administração pública para veicular desinformação e tirar a credibilidade das instituições brasileiras. 

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Mal virou a página do primeiro turno, antes mesmo do retorno das propagandas políticas no rádio e na televisão, as notícias falsas e a desinformação tomaram as redes — até mesmo perfis mais discretos começaram a compartilhar verdadeiras bombas de desinformação contra os candidatos à Presidência. A partir de então, as urnas eletrônicas e o sistema eleitoral não eram mais o alvo preferido das fake news e os temas ficaram mais diversos, com fortes ataques à Corte Eleitoral, ao Supremo Tribunal Federal, aos ministros e à figura dos candidatos.

Ao longo da corrida eleitoral, o impacto da desinformação no eleitorado tomou um rumo que, para alguns, poderia gerar descontrole e desequilíbrio no pleito e, da forma como o TSE estava atuando — julgando liminar por liminar — era um “enxugar gelo”. Para outros, o debate político precisa de livre circulação de ideias e não caberia ao TSE atuar como uma figura intervencionista — para esse grupo, a Corte passou a agir até de forma inconstitucional. 

O incremento das fake news levou a uma intensa judicialização na Corte Eleitoral sobre desinformação para o 2º turno — os pedidos de retirada de conteúdo se multiplicaram, assim como os direitos de resposta tomaram a pauta do tribunal. Segundo informações do TSE, até a quinta-feira (27/10), foram ajuizadas 625 representações no tribunal. Dessas, pelo menos 335 discutem de alguma forma fatos inverídicos, informações falsas ou fake news. No período eleitoral as representações tramitam de maneira preferencial em relação aos demais processos que dão entrada na Justiça Eleitoral. 

A representação é um tipo de ação que pode ser proposta por qualquer partido político, coligação, candidato ou pelo Ministério Público em caso de descumprimento da Lei das Eleições, como propaganda eleitoral irregular. A vantagem é que os prazos para julgamento das representações geralmente são curtos, havendo prazos de até 24 horas, como nos casos de análise de pedidos de direito de resposta.

Ao analisar os números do TSE, percebe-se que o número de representações entre o 1º e o 2º turno cresceram. Até o dia 2 de outubro — data do 1º turno das eleições — 186 representações de alguma forma discutiam fake news. O primeiro registro é do dia 15 de janeiro – ou seja, esse número compreende um prazo de 8 meses. Entre os dias 3 e 27 de outubro – pouco mais de 20 dias – foram registradas as mesmas 186 representações na Corte Eleitoral. 

O número de representações nas eleições de 2022 cresceu significativamente se comparado à 2018, quando foram protocoladas pelo menos 97 ações do gênero durante o pleito, de acordo com as planilhas de dados abertos do TSE. Esse aumento foi puxado, sobretudo, por denúncias de fake news e pedidos de remoção de conteúdo e direitos de resposta.

Além de representações também foram ajuizadas Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes) em que a discussão está nas fakes news, em uma delas, o PT questiona o “ecossistema de desinformação” montado pelo adversário de Lula, o presidente Jair Bolsonaro. Em outra ação, a campanha de Bolsonaro denuncia uma campanha de desinformação destinada a degradar a imagem pública do presidente. 

Aposta na judiciliazação

Segundo eleitoralistas consultados pelo JOTA, as campanhas presidenciais apostaram alto na judicialização. A estratégia foi amplamente usada, sobretudo, por Luiz Inácio Lula da Silva, que levou ao TSE a decisão de remover fake news antigas e recorrentes — como a de distribuição de kit gays nas escolas durante as gestões petistas — e novas — como o significado da sigla do boné CPX que Lula usou durante sua visita ao Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Foi a campanha de Lula que ajuizou a primeira Aije citando uma ação digital coordenada destinada às fakes news e ao favorecimento à Jair Bolsonaro. Depois, a própria campanha de Bolsonaro fez esse movimento e ajuizou ação similar. 

A advocacia petista tentou cercar o máximo possível qualquer conteúdo que pudesse minar a imagem do candidato. Conseguiu que o TSE não permitisse o uso de expressões como “ladrão” e “corrupto” a Lula, obteve direitos de resposta, a remoção de diversos conteúdos, além de conseguir bloquear perfis e desmonetizar canais bolsonaristas. A campanha do PT também tomou a delicada opção de pedir para que redes concessionárias de rádio e TV — como a Jovem Pan — não dissessem o que a campanha de Lula julgou como inverdade. Mesmo sob o risco de ter a imagem de Lula relacionada à censura. 

A campanha de Bolsonaro não ficou atrás e também conseguiu barrar o uso político de trecho de entrevista do presidente em que a edição associou a sua imagem ao canibalismo. A associação do presidente da República à pedofilia também foi proibida. Mas, a campanha de Bolsonaro usou menos o TSE como árbitro — em parte pela relação conturbada entre o presidente da República e o presidente do TSE, Alexandre de Moraes.

Com o alto grau de judicialização da disputa política, o TSE se viu em ciclo interminável de liminares e ações. O ritmo de novas ações e o tempo para a tomada de decisões tornou-se cada vez mais exíguo e mesmo o tribunal agindo de uma maneira ágil dentre as possibilidades jurisdicionais, o impacto das fake news já chegavam aos candidatos e as desinformações minavam qualquer tentativa de equilíbrio do pleito — justificativa dada pelos ministros para a remoção da maioria dos conteúdos relacionados às fake news. 

O caminho da judicialização da retirada de conteúdo é visto por alguns eleitoralistas como uma opção arriscada politicamente, pois pode dar mais visibilidade ao fato do que ele realmente merecia. 

“Enquanto a gente entender que esse modelo judicial é incapaz de dar conta [de conter a desinformação], é muito arriscado tomar a decisão de que toda vez que você judicializa você está ganhando. Ou toda vez que você coloca algo para debate, você está convencendo quem você quer convencer que quem perdeu está errado. Isso não acontece”, diz a advogada eleitoralista Marilda Silveira. “É uma estratégia arriscada colocar o Judiciário para retirar conteúdo do ar na perspectiva do candidato”, acrescenta. Ela cita, por exemplo, o caso de lives de Bolsonaro em que a Justiça Eleitoral tomou a decisão de retirar do ar e as visualizações entre a decisão judicial e a efetiva retirada aumentaram. 

Mas em 2022, as campanhas, em especial os advogados de Lula, Eugênio Aragão e Cristiano Zanin, resolveram levar para o front da Justiça eleitoral diversas representações e ações contra a desinformação. Ao JOTA, o advogado Cristiano Zanin informou que, desde o início da atuação jurídica na campanha de Lula, um dos eixos centrais seria o combate à desinformação. 

“Para esse trabalho trouxemos a assessoria de experts na área digital, o que nos auxiliou a derrubar dezenas de falsas teses que foram disseminadas contra o ex-presidente Lula. Esse trabalho também nos permitiu identificar um ‘ecossistema da desinformação’ que inclui diversos perfis relevantes nas redes sociais, que criam e distribuem informações falsas à população”, afirmou. 

“Essa atuação multidisciplinar nos deu melhores condições de enfrentar as fake news em relação às eleições de 2018, embora não possamos nos iludir que mesmo uma atuação judicial intensa e especializada, como a que promovemos, não consegue eliminar a desinformação”, acrescentou o advogado. 

Tentativas no combate à desinformação

No decorrer da campanha, a Corte Eleitoral percebeu que o esforço administrativo de buscar convênios com instituições de checagem, as conversas e os acordos com as plataformas no Programa de Enfrentamento às Fake News e todo o arcabouço normativo não mostrou-se 100% eficaz diante do complexo fenômeno da desinformação. As normas e os projetos de combate às fake news conseguiram atingir até certa camada do problema, mas mostraram-se incapazes de agir no cerne da situação. 

Com as ações inundando a parte jurisdicional, ministros do TSE e eleitoralistas começaram a ter a sensação de que a remoção dos conteúdos tornou-se uma atividade de “enxugar gelo”. As decisões foram tomadas a toque de caixa e ministros do TSE passaram a repetir em suas decisões que a liberdade de expressão está relacionada com responsabilidade e que seria preciso criar certos limites para a manutenção da isonomia entre os candidatos e a integridade do pleito. Inclusive, em várias situações os ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Benedito Gonçalves se reuniram em um movimento de manter certa uniformidade da Corte nessas decisões liminares de remoção de conteúdo. 

Dentro do próprio TSE havia o consenso que a Corte precisava agir de formas mais assertivas diante da desinformação do que fez em 2018, quando foi acusada de certa passividade diante do fenômeno. “A Justiça Eleitoral teve êxito em fazer o que era possível dentro desse quadro [da desinformação]. Agora, se imaginou uma quantidade de fake news mais ou menos compatível com o que foi 2018. Para isso, eu acho que a Justiça estava preparada, só que a quantidade foi maior do que em 2018”, avalia o ex-ministro do TSE e advogado, Henrique Neves

Moraes vinha demonstrando nas falas das sessões plenárias o descontentamento com o rumo da desinformação. No dia 13 de outubro, destacou que o TSE vinha constatando, principalmente após o início do segundo turno, uma espécie de “desinformação de segunda geração”, em que se faz uma manipulação a partir de fatos verdadeiros. “Junta várias informações verdadeiras e faz uma conclusão falsa”, afirmou. Na mesma ocasião, Moraes também disse que não se poderia admitir “mídia tradicional de aluguel”, prestando desinformação, em resposta aos canais bolsonaristas como o Brasil Paralelo e a concessionária Jovem Pan.

O presidente do TSE também foi a público para dizer que o volume de fake news e de demandas judiciais sobre o tema havia crescido entre o primeiro e segundo turno. O presidente do TSE informou que houve crescimento de 1.671% no volume de denúncias encaminhadas às plataformas digitais, em relação às últimas eleições. O ministro ainda afirmou que no segundo turno, foi registrado aumento de 436% – comparado a 2018 – dos episódios de violência política via redes sociais. Ao mesmo tempo, Moraes disse que houve diminuição do ataque às urnas e a desinformação se voltou para as pesquisas e entre os candidatos.

No dia 19 de outubro, Moraes se reuniu a portas fechadas com as plataformas. No dia 20 de outubro, o TSE publicou a resolução 23.174/2022 em que, a menos de 10 dias das eleições, ampliou o poder de polícia do TSE, deu à Corte Eleitoral o poder de retirada de conteúdo de ofício, sem provocação das partes ou do Ministério Público Eleitoral e diminuiu o prazo para que as plataformas retirassem os conteúdos inverídicos. Previu multas de R$ 100 mil a R$ 150 mil. E ainda proibiu a propaganda eleitoral paga na internet 48 horas antes das eleições e 24 horas depois.

Na opinião da procuradora da República e professora da Fundação Getúlio Vargas, Silvana Batini, a ação do TSE foi acertada. “Sem dúvida que o TSE precisou tomar essa medida. É muito preocupante ver que a coisa assumiu uma proporção tamanha que foi preciso mexer na resolução a 10 dias do segundo turno. Isso é um sinal que realmente as coisas fugiram do controle e que era preciso realinhar a forma de reagir. Não sei se será eficaz, se há tempo… A gente vai aprendendo conforme as coisas vão acontecendo, mas eu acho que era uma medida necessária”. 

Porém, opiniões contrárias se proliferaram. A partir da resolução, o discurso de que o TSE estava excessivamente intervencionista cresceu. Especialistas ouvidos pelo JOTA e que preferiram não se identificar criticaram a edição de uma resolução no meio do 2º turno e defenderam que o TSE excedeu o seu poder regulamentar ao adentrar matéria típica do Legislativo.

O procurador-Geral da República, Augusto Aras, posicionou-se contra a resolução e ajuizou no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade contra a norma com pedido de liminar.

Para o PGR, a resolução afastou o Ministério Público da iniciativa de ações ou de medidas voltadas a proteger a normalidade e a legitimidade das eleições. Além disso, defendeu que a resolução inova no ordenamento jurídico, com estabelecimento de nova vedação e sanções distintas das previstas em lei, amplia o poder de polícia do presidente do TSE em prejuízo da colegialidade, do juízo natural e do duplo grau de jurisdição. 

“A manifestação do pensamento, sem censura prévia, é tanto um espaço imune à intervenção estatal, como também é pressuposto da própria democracia, que exige um espaço livre para troca de opiniões. Não se pode confundir veiculação de ‘fatos inverídicos ou gravemente descontextualizados’ com a veiculação de opiniões. A uma opinião que desagrada contrapõe-se outra opinião, igualmente livre”, escreveu Aras. 

A resposta do Supremo à PGR foi imediata, com uma negativa de liminar do relator, ministro Edson Fachin, no dia seguinte à propositura da ação. Dois dias depois, a decisão é referendada por ampla maioria no Supremo. Fachin foi o presidente antecessor de Moraes no TSE. 

Em seu voto, Fachin afirmou que, a poucos dias do segundo turno das eleições de 2022, é importante que “se adote postura deferente à competência do TSE, admitindo, inclusive, um arco de experimentação regulatória no ponto do enfrentamento ao complexo fenômeno da desinformação e dos seus impactos eleitorais”. 

Fenômeno complexo

Na visão da procuradora e professora Silvana Battini, não é possível dizer que o TSE “enxugou gelo” e que não agiu diante do desafio das fake news. “A Justiça Eleitoral fez tudo o que podia fazer. Tudo que estava a seu alcance foi feito. O que está acontecendo é que a gente está sendo exposto a uma constatação que, realmente, o enfrentamento dessa questão é multidisciplinar, é muito transversal e há limitação da atuação da Justiça. A resposta jurídica é uma resposta limitada para um fenômeno que é muito mais complexo e mais grave”.

O ex-ministro do TSE e advogado eleitoral Henrique Neves diz acreditar que: “Nunca se chegará a um ponto ótimo porque do mesmo jeito que a Justiça se arma com convênios, acordos com os provedores, as campanhas se preparam com analistas, com  gente para pegar o material jurídico, os disseminadores da desinformação, também se organizam com recursos novos, tecnologia nova”. Para ele, uma solução para diminuir a proliferação de notícias falsas poderia diminuir o tempo do 2º turno, que tornou a situação mais cansativa, no entanto, essa alteração só pode ocorrer por emenda constitucional. 

Para a eleitoralista Marilda Silveira, a desinformação vai além da esfera eleitoral e que é preciso admitir que a sociedade como conhecemos no passado mudou e que são necessárias adaptações à nova realidade. “Essa matéria [desinformação] não é só de direito eleitoral, ela é de todas as áreas, do consumidor, da igreja, da concorrência, do filho com o pai… O problema é que a gente depositou na Justiça eleitoral a expectativa de resolver um problema que a gente não exigiu que os outros órgãos de controle também resolvessem. Esse é um problema do mundo e nós estamos sendo incapazes de resolver e a gente quer que a Justiça Eleitoral resolva em 45 dias.