Sabedoria, narrativas sobre a afro-ancestralidade e o poder das mulheres negras e indígenas, trocas de vivências, além de canto, dança e percussão, no chão de terra batida. Essa foram as marcas do último dia do 16° Festival Latinidades, etapa Brasília, que ocorreu neste domingo (9), da casa de religião de matriz africana Ilê Asè Oya Bagan, localizada na cidade do Paranoá, a 25 km do centro da capital federal.
Em uma gira de conversa, três palestrantes debateram sobre o Bem Viver Ubuntu, nas relações entre as pessoas, pautadas pelos valores da coletividade, do respeito, solidariedade e empatia.
Natureza não é mercadoria
A engenheira agrônoma, ativista negra e propositora da Marcha das Mulheres Negras, Nilma Bentes, relatou os desafios para mobilização do público para realizar a primeira marcha, que desde sua concepção, em 2015, buscou ser um protesto contra o racismo, a violência, a desigualdade social e de gênero no Brasil, pelo bem viver.
A ativista negra defende que não é aceitável haver mercantilismo sobre elementos da natureza e citou a terra, os minérios, águas e corpos humanos. Para ela, é preciso diminuir o consumismo para preservar a vida e o planeta. “A colaboração deve estar acima da competição. E economia tem que ser subordinada à ecologia, não é o contrário. A economia tem devastado muito”.
Nilma Bentes defendeu uma mudança de paradigmas: ao invés das pessoas buscarem o sucesso, devem voltar-se ao autocuidado e o cuidado com os outros. “É preciso cuidar do planeta, da florestania. A humanidade precisa ser respeitada”. Ela destaca o conceito de florestania como uma afirmação de possibilidade de vida cidadã dentro da floresta.
Bentes se disse agnóstica e deixou o questionamento sobre a opressão ao feminino. “Se metade da humanidade são mulheres, e a outra metade são filhos delas, por que existe essa hegemonia do masculino?”.
Ética amorosa
Assistente social do sistema prisional baiano e doutora em estudos feministas pela Universidade Federal da Bahia, Carla Akotirene, destacou que é uma decisão política estar na militância pela valorização dos negros e quem rege essa luta é o amor. “A gente só recebe pedradas, recebe achincalhamentos, chacotas. O que é totalmente oposto à epistemologia de Oxum, se for considerada a ética amorosa que está dentro do terreiro e a conexão da água à nossa ancestralidade. E a gente confia em ogum, na justiça, respeita as crianças, os mais velhos. A ética amorosa está na filosofia dos terreiros”.
Após estudos, orientações da família e do terreiro que frequenta, a militante disse entender que os saberes não estão apenas retidos às pessoas que tiveram acesso ao ensino superior. E que é preciso olhar para os antepassados.
“Eu penso que o Sankofa dos mais novos está com torcicolo, porque há uma dificuldade tremenda em olhar para trás. A gente não tem se tratado como divindade. Estão se tratando como ‘eu-tidade’, visto que tudo que estão fazendo é mais importante do que os mais velhos fizeram. Então, a tecnologia acaba imprimindo a ideia de que o que os mais velhos fizeram é ultrapassado, obsoleto e não merece reverência. Isso pra mim é muito perigoso”.
Sankofa é o símbolo africano representado por um pássaro com a cabeça voltada para trás, para recordar erros do passado, para que não voltem a ser cometidos. Acredita-se que esse olhar para o passado serve para adquirir conhecimento e sabedoria.
Oralidade
A Iyalorixá do Ilê Axé Oxum Karê, mestra coquista e comunicadora pernambucana de Olinda, Beth de Oxum, destacou o poder da oralidade para transferência de saberes pelos mais velhos e valorização das mulheres, sobretudo daquelas de terreiros de religiões de matriz africana. Ela pede que as pessoas andem descalças na terra para que possam sentir o sagrado.
“Devido à força que há na terra, esta não pode ser vendida, nem comprada. E a disputa de terra é uma das coisas mais perversas que a humanidade atravessa. Os povos originários, tanto os indígenas, como os povos de terreiros, a gente compreender a terra como algo extremamente coletivo”.
Beth de Oxum também destaca a força feminina valorizada pelas religiões de matriz africana. “O poder de nutrir é das mulheres, desde o gerar da vida e a amamentação. Nos terreiros, a mulher é a força. O terreiro é o matriarcado. Já o patriarcado está no sistema que se apropriou de tudo”.
A Iyalorixá pernambucana repeliu o racismo e a discriminação religiosa. “Ninguém pode ser humilhado, nem ser escarnecido e vilipendiado perante sua fé. Mas é o que acontece todos os dias e todas as noite. E ninguém faz nada”, lamenta Beth de Oxum.
Impressões
A responsável pelo terreiro Ilê Asè Oya Baga, que recebeu as atividades do último dia do 16° Festival Latinidades, mãe Baiana, disse que a casa está de portas abertas e citou os orixás do candomblé. “Ilê Asè Oya Baga é a casa que acolhe, que sempre está de portas abertas. Cada um que passa naquela porteira, Exu recebe. Cada um que chega aqui dentro, Iansã acolhe. E no meio caminho, Ogum cai para dentro das batalhas e livra cada um de nós de todos os males”.
A mediadora da gira de conversa, a produtora de conteúdo digital Janaína Costa, de 30 anos, disse que voltará ao Quilombo do Macuco, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, impactada pelo que ouviu das mulheres painelistas. “Estou indo para casa agora, literalmente, com muito mais perguntas, mais sede de saber mais sobre mim, sobre a minha própria história e me conectar. Então, tudo que foi dito sobre conexão com a natureza, com a terra, me ajudará a chegar em casa e a olhar com muito mais atenção e com mais beleza, porque sempre esteve lá”.
A mestre de cerimônia do Festival Latinidades desde 2011, Maria Paula Andrade Sato, fez um balanço da 16ª edição, que ocorreu em Brasília desde quinta-feira (6). “Houve muita potência e amor. É a prova viva de que nós, mulheres, todas juntas, sejam mulheres negras, mulheres indígenas, latinas, somos as donas disso tudo, dessa roda toda, desse mundo. Tudo isso só gira porque tem a nossa força feminina. Por isso, temos que estar em todos os espaços: nas políticas públicas, na televisão, no judiciário, em todos os espaços. Temos o poder de curar, porque o que não falta em nós, mulheres, é o amor”.
Encerramento
A apresentação da mestra Martinha do Coco com tambores, cantas e danças em roda com todos os presentes no terreiro Ilê Asè Oya Bagan encerrou o 16 Festival Latinidades, etapa Brasília. Nos momentos finais, a diretora Geral do Latinidades, Jaqueline Fernandes, conversou com a reportagem da Agência Brasil e avaliou que o festival acerta em estar em vários espaços representativos. “Acho que ser o maior festival de mulheres negras da América Latina é poder estar, também, em espaços da micropolítica, em ilês, em terreiro de axé como este de hoje. Então, nem sempre ser maior é estar como estivemos ontem, com milhares de pessoas, na Esplanada dos Ministérios. Estou muito orgulhosa por essa edição do Latinidades”.
Pela primeira vez desde que foi criando, em 2008, o Festival Latinidades terá programação em outras três capitais, além de Brasília: Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. O festival chega ao Rio de Janeiro em 15 julho. Estão previstos cortejo, painéis, rodas de conversa e lançamento literário. Confira a programação oficial no site do evento. As inscrições são gratuitas.