Para revisitar e atualizar a obra do romancista negro Lima Barreto foram convidados 22 escritores. O resultado foi o livro Quilombo do Lima, cujo lançamento se tornou um dos destaques da programação da 12ª edição da Festa Literária da Periferia (Flup), realizada neste sábado (13), no Rio de Janeiro.
A escritora Daiana de Souza conta como surgiu a ideia. “Veio do organizador da Flup, Júlio Ludemir. Ele sugeriu um livro que pudesse repensar um pouco os contos do Lima Barreto para uma plateia que é dos nossos tempos. Recriá-los, pensá-los de outra forma, para de certa forma até trazer Lima Barreto para novos leitores. Os contos foram escritos por pessoas que já passaram pela Flup em vários outros processos ao longo desses anos. Durante três ou quatro meses, discutimos e escolhemos os contos que a gente mais gostava. E a partir daí, cada um escreveu o seu texto”.
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A Flup foi realizada pela primeira vez em 2012 e, desde então, acontece todos os anos, tendo tido algumas edições que recorreram à programação online devido à pandemia de covid-19. O evento, que já liderou a publicação de mais de 20 livros de autores das periferias do Rio de Janeiro, é realizado em territórios tradicionalmente excluídos dos programas literários. Já passou, por exemplo, pelo Morro dos Prazeres e por Vigário Geral. A edição deste ano acontece na Arena Samol, na Ladeira do Livramento, no centro da capital fluminense.
A programação inclui um cortejo, a apresentação do Bloco Prata Preta, a lavagem das escadarias da Arena Samol, o bailinho dos crespinhos, apresentações artísticas e performances inspiradas em trabalhos literários. Também está prevista a participação do compositor Gilberto Gil e do sambista Haroldo Costa. O lançamento de Quilombo do Lima foi um dos destaques durante o início da tarde.
Autor do célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto produziu inúmeros contos, sátiras e crônicas. Foi também um crítico da Primeira República Brasileira, contestando o nacionalismo ufanista e a manutenção dos privilégios de famílias aristocráticas e dos militares. Sua produção literária se volta para a discussão de temas ligados às desigualdades sociais e à hipocrisia nas relações humanas na sociedade do início do século 20. Ele também deu visibilidade para a vida no subúrbio carioca e aproximou a linguagem coloquial do romance brasileiro.
“Ele tem muitos contos. Então, a gente teve muito material para estudar e para escolher, podendo abordar temas variados. Ele falava bastante sobre a sociedade carioca, discutia temas políticos, mas falava também do subúrbio, de famílias negras e como que essas pessoas conseguiam achar seus lugares. Eu escolhi um conto que me permitiu discutir um pouco como que nós, as pessoas negras, somos múltiplas humanas e podemos errar, mas é importante que tenhamos para onde voltar. E como é importante também defender a nossa memória, as nossas histórias e as lutas dos que vieram antes de nós”, conta Daiana.
Quilombo de Lima
No final do ano passado, um evento organizado em preparação para a Flup já havia sido batizado de Quilombo do Lima. O primeiro dos dois dias da programação foi marcado para 31 de outubro, dia do aniversário de Lima Barreto. Na ocasião, o escritor foi homenageado e relembrado em mesas de debate com romancistas negros no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB), no centro do Rio de Janeiro. Também foi exibido o filme Lima Barreto, Ao Terceiro Dia, dirigido por Luiz Antonio Pilar e lançado em 2018.
Assinando um dos contos em Quilombo do Lima, Sueca crê que o lançamento do livro valoriza a riqueza do trabalho de Lima Barreto e, ao mesmo tempo, dá sua contribuição para uma reparação história. Alguns dos trabalhos mais expressivos do escritor foram publicados apenas após sua morte. Sueca observa que o escritor foi desprezado e invisibilizado pelas elites intelectuais modernistas.
“Principalmente por essa hierarquização dos modos de escrita. Então precisamos refletir: quem escreve, o que escreve, da onde escreve? E Lima Barreto mostra que a linguagem que chega, por exemplo, pela oralidade também é tão legítima quanto essa forma materializada da escrita”, avalia.
Para Camila de Araújo, que também é autora de um dos contos, o lançamento do livro no 13 de maio, dia da assinatura da Lei Áurea, é simbólico. Ela destaca ainda que a releitura dos contos de Lima Barreto é facilitada pela atualidade dos temas que ele aborda. “Ele é um percursor da literatura negra e as questões que ele trata são completamente atemporais. Elas dialogam completamente com as questões estruturais que o Brasil está começando a enxergar sobre a negritude, o racismo, o preconceito, o racismo religioso”.
Duas homenagens
A escolha do local para realização da Flup em 2023 teve um motivo especial. Um dos homenageados dessa edição é Machado de Assis, que nasceu em um dos imóveis situados na Ladeira do Livramento. O evento propõe um novo olhar sobre a obra do escritor que viveu entre 1839 e 1908 e é um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL).
“Machado de Assis. Aquele que te obrigaram a ler antes mesmo de você se interessar por literatura. Aquele que escreve difícil e que cai na prova, cuja obra se resume a se Capitu traiu ou não Bentinho. Machado não é um intelectual hermético da zona sul. Nunca pisou em uma universidade. O Machado que te apresentaram na escola não existe. A escola não quer incitar a revolução e Machado é revolucionário. Preto, nascido no coração do Morro da Providência, cria da Ladeira do Livramento, filho de Maria e Francisco. Joaquim Maria Machado de Assis está mais próximo da nossa realidade do que nos fizeram imaginar. Esse é o Machado que eles não queriam que você conhecesse”, registro o texto de homenagem.
A outra homenageada da edição é a escritora, artesã e sacerdotisa Mãe Beata de Iemanjá, falecida em 2017, que desenvolveu trabalhos relacionados à defesa e preservação do meio ambiente, aos direitos humanos, à educação, saúde, combate ao sexismo e ao racismo. “Mostrou com sua história de vida e sabedoria os frutos da diáspora baiana na cultura carioca e brasileira, fortalecendo que oralidade é escrita ancestral, perpetua saberes literários, sociais e políticos”, destaca a Flup.