As marcas de tiros ainda estão na parede que foi pintada de verde claro. Antes, era rosa. Os vestígios do assassinato de Maria Bernadete Pacífico, de 72 anos, líder do Quilombo Pitanga de Palmares, na cidade de Simões Filho, na Bahia, significam mais do que lembranças da dor. “É para que ninguém esqueça. São cicatrizes de uma cena de terror”, diz o neto, Wellington Santos, de 23 anos, que estava em casa quando, por volta das 20h40 do dia 17 de agosto de 2023, dois homens dispararam pelo menos 25 tiros contra a idosa.
O neto, uma irmã e um primo adolescentes foram trancados nos dois quartos. Um ano depois, a família e a comunidade enlutadas buscam honrar o legado de “Mãe Bernadete”, uma mulher que passava seus dias tentando melhorar as condições das pessoas e do lugar em que morava.
A morte da avó, praticamente diante dele, não foi o primeiro trauma na vida de Wellington. Em 2017, o pai dele, Flávio Pacífico, 36 anos, também líder quilombola e defensor de direitos humanos, foi assassinado em uma rua próxima de casa. “Quando a minha avó foi assassinada, eu vi o ciclo se repetir. Eu saí do emprego para poder dar atenção às questões comunitárias”. Ele, hoje, passou a lutar por políticas públicas para a comunidade. “Como minha avó e meu pai fizeram, eu quero continuar a lutar”, diz o rapaz, que tem produzido documentos em nome da comunidade em causas como o pedido para concessão de crédito rural. A comunidade de Pitanga dos Palmares conta com 2.638 pessoas e 598 famílias.
Legado e ameaças
A ideia de que o “legado continua” não sai do coração e das palavras também do filho de Bernadete, Jurandir Pacífico. “Todos nós sabemos que ser de comunidade quilombola é resistir todos os dias”, afirmou, na sexta-feira (16), em evento na comunidade em homenagem à memória de Bernadete.
“A gente tem essa responsabilidade de continuar com esse legado tão lindo e corajoso”. Ele traz na memória o ideal da mãe de que o legado precisava continuar. Ele enfatiza que adeptos de religião de matriz africana são perseguidos e que existe temor na comunidade. “Há 40 dias, eu fui ameaçado. Ouvi que eu seria o próximo (a ser vítima)”. Jurandir enfatizou que já denunciou ameaças para as autoridades.
Mesmo enlutados e com temor, família e comunidade resolveram realizar nesse período – que poderia ser apenas de dor – mais um ato de resistência com o 7º Festival de Cultura e Arte Quilombola. São promovidas, até domingo (18), rodas de conversas e debates, oficinas e apresentações culturais e dos produtos que as pessoas da comunidade aprenderam a fazer.
Cuidado
Entre as oficinas lembradas e que receberam importante atenção de Mãe Bernadete, houve apresentação do Projeto “Resistência Quilombola”, que tem como motivações a proteção e o autocuidado nos territórios.
O projeto é da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e trabalha com protocolos de segurança. “Passou a ser uma das bandeiras de luta também da Mãe Bernadete. O projeto trata de temas sensíveis à realidade. A gente mexe um pouco com a memória afetiva de cada um. Nós participamos do festival, mas nós iremos retornar novamente para trabalharmos”, diz o coordenador, Maximino Silva. O projeto tem atuação em sete estados.
Além dos diálogos, o festival mostrou como as ações e incentivos de Bernadete são a chave da história da comunidade. A hoje artesã Edna Batista, 56 anos, diz que foi a amiga de longa jornada que a incentivou a criar uma nova possibilidade de renda quando ensinou a fazer bonecas e outros artigos com pano e areia. Ela recorda que a amiga sempre cobrava participação de todos. “Antes dela, não tinha luz nem água aqui”, conta Edna.
O artesão Francisco Celestino, 53 anos, afirma que faz parte da primeira família que se instalou no lugar. E que, desde que Bernadete chegou, há 15 anos, houve uma transformação. Foi a idosa que estimulou ele e a esposa, Claudicéa, a aprender a fazer artes com a piaçava, extraída pelos agricultores da própria comunidade.
O casal faz de brincos a telas, de vasos e adornos. Os dois vendem os produtos nas feiras na cidade e até pela internet. Francisco é o presidente da associação dos artesãos (33 pessoas, só ele de homem) e tenta manter a comunidade empolgada. “Ela nos ajudou muito. Precisamos reconhecer que mudou a vida de todos por aqui”. Trata-se de uma ligação já antiga. Francisco recorda que era professor da creche do distrito e que Bernadete chegava a dormir no local para organizar o atendimento às crianças no dia seguinte.
Perto de onde o casal de artesãos mostrava as artes em piaçava, um grupo de agricultores lembrava que foi Bernadete também que conseguiu equipamentos para uma fábrica de farinha de mandioca. Pedro Almeida, de 60 anos, disse que foi com “imensa felicidade” o dia que recebeu da amiga, há dois anos, a notícia que poderiam trocar a atividade em manufatura por máquinas que tornaram possível fabricar 30 sacos de 50 kg por dia. “Vendemos nas feiras e mais agricultores entenderam o que poderíamos fazer”, afirma.
Titulação
Sejam os avanços comunitários ou os riscos por quais passam comunidades quilombolas, quem atua na defesa dos territórios enfatiza a necessidade da titulação das terras que pode deixar as populações mais amparadas. “O governo federal vem ajudando a comunidade e acelerou o processo de titulação”, diz Jurandir Pacífico. Em abril, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) declarou as áreas situadas no município de Simões Filho, na Bahia, como territórios pertencentes à Comunidade Remanescente de Quilombo de Pitanga de Palmares.
A luta pela titulação, no entender do filho, foi o fator principal para a morte dela. “Entendo que esse crime ocorreu a mando de algum interesse. Alguém pode ter usado o tráfico de drogas para executar a mãe Bernadette, ou seja, pagou o traficante”. As investigações da Polícia Civil atribuíram o crime ao tráfico. O inquérito policial indiciou seis pessoas pelo envolvimento na morte de Bernardete.
Crime
De acordo com as investigações, foram dois executores, dois mandantes e mais dois participantes (que facilitaram com informações) identificados como responsáveis pela morte. A mais recente prisão, em julho, foi de Ydney dos Santos. A polícia apontou, em abril, que estavam foragidos Marílio dos Santos e Josevan Dionísio. Três homens já haviam sido presos no ano passado. Para defender a investigação, a Secretaria de Segurança Pública apontou que houve 80 oitivas, 20 medidas cautelares e 14 laudos periciais.
Para a superintendente estadual de Direitos Humanos, Trícia Calmon, a violência contra lideranças, defensoras de direitos humanos em suas comunidades, precisa ser combatida de forma urgente. Segundo ela, existem dois momentos em que os riscos das lideranças são aumentados.
“O primeiro é quando ninguém está olhando. Ninguém está olhando as dificuldades e as lutas que são postas ali naqueles territórios. O segundo, que foi o caso de Dona Bernadete, é quando todo mundo está olhando para aquele contexto, para aquela situação. E aí as forças interessadas naquele território compreendem que estão diante de um risco iminente de perder espaço”, diz Trícia.
Ela avalia que o crime organizado emite um recado violento para amedrontar comunidades que, geralmente, são afastadas do meio urbano e que precisam de mais serviços públicos. Por isso, Trícia defende ações de diferentes instituições. “Foi criada uma força-tarefa para a realização fundiária visando tentar um modelo mais célere para a regularização. Nesse sentido a gente verificou um avanço em relação aos procedimentos de regulação fundiária”.
Ela afirma que a dificuldade da posse do direito à terra, que é uma questão histórica no país, é um problema porque são comunidades invisibilizadas. Na Bahia, há 1.046 comunidades quilombolas. A respeito da responsabilidade do crime, Trícia concorda com a ideia defendida pela família da vítima, segundo a qual a problemática da disputa da terra é o contexto principal do homicídio.
Sem arredar o pé
Enfática a esse respeito também é a dirigente da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e assistente social Selma dos Santos Dealdina. “Nós vamos reafirmar hoje e sempre que Dona Bernadete morreu por lutar pela terra, por denunciar vendas de lotes e desmatamento do território. Ela morreu porque cobrava justiça pelo assassinato do filho. A gente não trabalha com essa hipótese levantada pela polícia”.
Selma considera que a situação dos quilombolas não avançou depois do assassinato. “Nós tivemos cinco lideranças executadas nessa luta pela terra. A gente continua com dificuldade porque a lentidão para titular os territórios ainda é muito grande. Não mudou o cenário, pelo contrário”, afirma.
Ela entende que a ameaça é permanente e contextualiza que há no Incra mais de 1.850 processos para regularização fundiária.
“Estamos aguardando e costuma haver alguma visibilidade para a pauta negra apenas no dia 20 de novembro (dia da Consciência Negra no Brasil). Não dá só para serem entregues portarias e decretos e titulações só no 20 de novembro”. A dirigente diz que as comunidades estão amedrontadas. “Não estamos seguras, mas também a gente não arredou o pé”, confessa.
“Agenda nacional”
O secretário nacional de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades, Ronaldo dos Santos, também reconhece que é preciso intensificar os programas de segurança porque essas lideranças ficam realmente muito expostas e vulneráveis. “E também intensificar a política de regularização fundiária. A gente sabe que a regularização encerra ou protege muito as comunidades dessas ações violentas no campo”.
Ele explica que há hoje cerca de 350 títulos de propriedade definitiva quilombola expedidos no Brasil, que correspondem a cerca de 400 comunidades quilombolas. “Nós temos nos debruçado sobre um plano de ação da Agenda Nacional de Titulação. Temos feito a discussão e buscado saída para pensar como fortalecer os programas de proteção, como fortalecer esses territórios quilombolas com a chegada de políticas públicas e fortalecimento das organizações de base quilombola”, acentua.
Presentes
Enquanto esperam a titulação definitiva, familiares de Bernadete se emocionam, mas apresentam um sorriso no rosto quando falam de tudo o que a matriarca ensinou. “Hoje, eu almejo fazer coisas de direito, de pensar direito, conhecer esse mundo jurídico e ter mais opções para defender os interesses da minha comunidade”, observa o neto Wellington que não deseja ir embora do Brasil.
“Não conseguiria me olhar no espelho. Espero que um dia eu possa ter segurança de viver em minha comunidade novamente”, diz.
Enquanto percorre a casa em que ocorreu o crime, Jurandir, tio de Wellington e filho da liderança quilombola, não esmorece. “A nossa vida mudou depois dessas covardias que fizeram com minha mãe e meu irmão. Mas eles estão presentes em nós”, finaliza.
*O repórter viajou a convite da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)