Médicos explicam nova pílula antirressaca, que diz quebrar 70% do álcool uma hora após ingestão

Como funciona a pílula antirressaca? Especialistas explicam. Médicos detalham o funcionamento do novo comprimido, que promete quebrar 70% do álcool uma hora após a bebida, e analisam evidências sobre o produto

Nesta semana, uma pílula que promete acabar com os sintomas da ressaca causada pelo álcool começou a ser vendida pela empresa De Faire Medical no Reino Unido. O lote inicial, destinado aos primeiros seis meses de comercialização, esgotou em apenas 24 horas, enquanto diversos britânicos corriam ao site da empresa para garantir uma unidade e poder aproveitar uma noite de bebidas sem consequências incômodas no dia seguinte. Especialistas detalham como o composto, feito com bactérias e vitaminas, poderia produzir o efeito desejado no organismo, e analisam o estudo utilizado como evidência para o produto.

— As bactérias têm algumas especificidades, então algumas presentes em intestinos de gado quebram celulose, por exemplo. Então é do metabolismo da própria bactéria qual substância que ela “come”. Então existem bactérias que quebram o álcool, outras que quebram açúcar. Essas (da pílula) podem até ser bactérias que já estão no intestino, mas que não tem uma predominância e por isso não têm um efeito maior — diz a doutora em endocrinologia Andressa Heimbecher, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).

A pílula, chamada de myrkl, é composta por probióticos – duas bactérias consideradas boas para o intestino –, além de um aminoácido chamado de cisteína para potencializar o efeito e uma dose de vitamina B12. Segundo os responsáveis, a vitamina seria apenas para promover uma sensação de estar “revigorado”, enquanto os microrganismos seriam os agentes por trás da quebra do álcool.

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A ideia, afirma Andressa, é que a degradação das moléculas ocorra antes que elas cheguem ao fígado, reduzindo a absorção da substância pelo organismo. Isso porque é no fígado que acontece a metabolização da bebida. O problema é que, durante esse processo, o álcool é transformado em acetaldeído e ácido acético, que são os responsáveis no dia seguinte pelo mal-estar, além de sobrecarregar o órgão.

Segundo o estudo utilizado como evidência para o produto, esse mecanismo da pílula reduziu em 70% o álcool no sangue uma hora depois da ingestão de duas doses de destilados, em comparação com pessoas que não ingeriram o produto. Para isso, a recomendação é que o uso de dois comprimidos seja feito de uma a 12 horas antes de começar a consumir o álcool. A Myrkl diz ainda, em seu site, que se trata do “primeiro produto na história a quebrar o álcool de forma efetiva”.

A absorção pelo organismo da substância chegou a ser 50% menor já na primeira meia hora durante o estudo, indicando o potencial das bactérias em quebrar de forma rápida as moléculas de etanol – principal ingrediente das bebidas alcoólicas. Porém, essa menor circulação no sangue também diminui as chances de chegar ao cérebro, local onde produz os efeitos da bebedeira. Portanto, especialistas explicam que isso pode levar a uma necessidade maior de álcool para os que bebem pois desejam sentir-se embriagados.

Ideia é boa, mas estudo é controverso

Embora essa seja de fato a conclusão dos testes, publicados na revista científica Nutrition and Metabolic Insights em junho, os especialistas afirmam que eles não são suficientes para comprovar que a pílula é capaz de evitar a ressaca. Isso porque, apesar de a ideia ser considerada boa, a pesquisa envolveu um número muito pequeno de participantes, o efeito do comprimido foi avaliado após uma semana de ingestão contínua dos probióticos e as doses de álcool ingeridas foram muito baixas.

— O artigo inclui um número muito pequeno de pacientes, com, dos 24, somente 14 sendo devidamente avaliados. Os próprios autores deixam claro que é um número muito pequeno e que ingeriram doses muito baixas de álcool. Se for avaliado num número maior de pessoas, com doses maiores de álcool, por um tempo maior de uso, pode até ser uma boa ideia, mas agora o que se vê é muito escasso. O conceito é interessante, mas é um estudo piloto, o que não pode ser utilizado para a venda em massa de um produto — avalia o chefe do serviço de Hepatologia da Santa Casa do Rio de Janeiro, Cláudio Figueiredo Mendes.

Andressa Heimbecher, endocrinologista, cita ainda que há riscos, especialmente para pessoas com questões de saúde ligadas ao intestino, que também não foram devidamente testados pelos pesquisadores no estudo pelo número insuficiente de voluntários avaliados.

— Mesmo se fossem 100 participantes ainda seria uma amostra pequena, e não há outros estudos sobre. Para se ter ideia, em estudos com medicamentos a gente fala de 3 a 5 mil participantes, alguns com quase 10 mil. Então, em termos de pesquisa, me preocupa não saber se tem ou não de fato benefícios, mas também se há ou não riscos de uma disbiose pelo uso contínuo, um desequilíbrio da flora intestinal, pelo excesso das bactérias — pontua a especialista.

Por se tratar de probióticos e vitaminas, o produto é comercializado como um suplemento e não precisa passar pelo rigoroso processo de avaliação das agências reguladoras antes de chegar ao mercado.

Alguns efeitos não serão reduzidos

Ainda que a pílula se mostre eficaz, os especialistas lembram também que alguns efeitos negativos da bebida não serão prevenidos. Isso porque, além do impacto do acetaldeído e do ácido acético, alguns sintomas da ressaca são ligados à desidratação pela baixa ingestão de água na noite anterior.

Além disso, há sintomas relacionados à agressão no estômago, como enjoos e gastrites, que também não seriam evitados, já que o álcool passa pelo órgão antes de chegar ao intestino, onde seria quebrado pelas bactérias.

— Uma parte da absorção do álcool acontece no estômago, e as bactérias que quebram a substância não ficam ali porque é um ambiente ácido. Então efeitos como gastrite, refluxo, enjoo não seriam minimizados. Pode evitar aquele enjoo mais tardio, relacionado a um quadro provocado pelo acetaldeído e ácido acético, mas aquele no momento da bebida não — explica Andressa.

Fonte: O Globo