Francês foi um dos fundadores do movimento conhecido como “Nouvelle Vague”, ao lado de diretores como Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer e Jacques Rivette
Morreu nesta terça-feira, aos 91 anos, o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, segundo o jornal Libération. Ele foi um dos líderes da Nouvelle Vague, movimento que revolucionou o cinema a partir do final dos anos 1950. O impacto causado por seu primeiro longa, “Acossado”, dura até hoje entre jovens cineastas. Ao longo de mais de 60 anos de carreira, Godard acompanhou as diversas fases do cinema, explorando mídias como o vídeo, o digital e até o cinema em 3D. Por sua influência no cinema de vanguarda, ganhou o apelido de God-Art (Deus da arte).
Segundo a família, o cineasta morreu em paz cercado por seus próximos. Segundo o jornal “Libération”, que ouviu amigos da família, ele teria recorrido ao suicídio assistido, prática legal na Suíça, onde morava. “Ele não estava doente, apenas esgotado”, disse uma fonte ao jornal francês. A família também informou que não haverá cerimônia pública e que seu corpo será cremado.
Nascido em Paris, em 1930, Godard cresceu e frequentou a escola em Nyon, na Suíça. Voltou a Paris após de terminar os estudos, em 1949, e começou a frequentar os cineclubes que surgiam na época na capital francesa, onde conheceu o crítico André Bazin e outros futuros cineastas, como François Truffaut, Claude Chabrol ou Jaques Rivette. Por suas ideias inovadoras e seu espírito combativo, eles ficaram conhecidos como “les jeunes turcs” (os jovens turcos). Godard era o último representante vivo do grupo.
“Acossado”
Escrevendo regularmente na revista Cahiers du Cinéma, Godard, Truffaut, Chabrol, Rohmer e outros começaram a expor as ideias do que seria a Nouvelle Vague, movimento disruptivo que criticava o cinema francês tradicional. Godard e outros líderes do movimento defendiam uma outra forma de fazer cinema na França, livre das amarras do que chamavam de “qualidade francesa”. Com liberdade narrativa e muitas cenas externas, filmadas na rua, os cineastas da Nouvelle Vague atacavam o “cinema burguês” e propunham novas formas de pensar um filme.
Primeiro longa de Godard, “Acossado” (1960) reúne todos esses atributos. Com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg nos papéis principais, o longa se tornou um símbolo da modernidade, influenciando outras “novas ondas” por todo o mundo, incluindo no Brasil. Diretores de vanguarda como Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Joaquim Pedro de Andrade foram profundamente marcados pelas ideias da Nouvelle Vague – e particularmente de Godard .
Ao longo de toda década de 1960, Godard continuou causando impacto com filmes considerados clássicos como “O Desprezo” (1963), com Brigitte Bardot; e “O demônio das onze horas” (1965), com a sua então esposa, Anna Karina. O seu “Bande à part” (1964) tem cenas clássicas, como a corrida dos personagens dentro do Louvre, que até hoje são compartilhados em formato de GIF nas redes sociais pelas novas gerações. O título do longa foi usado por Quentin Tarantino para batizar sua produtora, nos anos 1990. A esse respeito, Godard chamou o americano de “patife” em 2014: “Era melhor ele ter me dado dinheiro”, ironizou.
Os anos 1960 são marcados por filmes que observavam as mudanças de costumes e a animosidade social, cultural e política da França, como “Masculino Feminino”. Outro clássico do período é a ficção científica “Alphaville”, um de seus filmes mais populares.
Fase maoísta
Lançado em 1967 com a sua então esposa Anne Wiazemsky, “A chinesa” retrata jovens maoistas na Paris pré-Maio 1968, fazendo um prenúncio dos eventos políticos que colocariam os estudantes franceses nas ruas. Cada vez mais imerso na luta política, o cineasta foi se afastando progressivamente do circuito comercial e passou a produzir filmes ainda mais experimentais.
Trabalhando com documentaristas e coletivos políticos nos anos 1970, Godard abordará temas como a Guerra do Vietnã, o movimento Panteras Negras e a contracultura. Ele juntou esses três temas em “One + one”, em que filma ensaios dos Rolling Stones. Essa época é marcada pela associação do diretor com o Grupo Dziga Vertov, coletivo que reunia artistas de orientação maoista, e também por suas primeiras experimentações com o vídeo.
Nos anos 1980, Godard volta ao circuito comercial com filmes polêmicos. O público, no entanto, tem dificuldade de acompanhar suas experimentações. Apresentado como um filme policial e repleto de astros, “Detetive” é apresentado no Festival de Cannes em 1985 e fracassa nas bilheterias.
Filme censurado por Sarney
No mesmo ano, ele revolta a igreja católica com “Je vous salue, Marie” que transporta a história de Maria, mãe de Jesus, para o século XX. Maria vira uma estudante que trabalha num posto de gasolina e namora um taxista, chamado José. Um estranho chamado Tio Gabriel revela que ela ficará grávida, mesmo sendo virgem. O filme chegou ao Brasil 1986. Sarney na época disse que o vetaria no país com “base na Constituição”. No fim, o longa estrearia no Rio de Janeiro no dia 17 de novembro de 1988
Em 1987, ele recebeu um César de Honra por sua carreira como um todo, e a Academia do Oscar fez o mesmo em 2010. O Festival de Cinema de Cannes também lhe concedeu uma Palma de Ouro especial em 2018. Em 1995, a associação de críticos de Nova York o premiou pelo conjunto da obra. Mas, em vez de ir à cerimônia, o sempre provocador cineasta enviou uma carta com uma lista de seus fracassos. Como, por exemplo, de ter impedido Steven Spielberg de ter reconstruído Aushwitz (em “A lista de Schindler”) e “não ter obrigado as vovós do Oscar” a premiar o cineasta iraniano Abbas Kiarostami.
Produzidas entre 1988 e 1998, a sua série “História(s) do cinema” é considerada um de suas obras seminais. Reflexão sobre o esgotamento da imagem e do impacto dela sobre a nossa cultura no século XX, os filmes são um exemplo do uso inventivo do uso inventivo da colagem e do som. O cineasta costura, desacelera, sobrepõe e deforma imagens roubadas de velhos longas, enquanto sua voz rouca narram um texto repleto de ironia e poesia. O texto do filme foi transformado em um livro homônimo, publicado no Brasil em 2022.
Colaboração com as mulheres
O filósofo Gilles Deleuze dizia que a principal qualidade do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, morto nesta terça-feira, 13, era a “solidão”. Porém, o mestre da Nouvelle Vague teve a companhia de várias mulheres marcantes em sua vida pessoal e profissional. Ele foi casado com as atrizes Anna Karina (1961 a 1967) e Anne Wiazemsky (de 1967 a 1970) e com a cineasta Anne-Marie Miéville (de 1971 até sua morte). Todas trabalharam intensamente com Godard e influenciaram seus filmes.
Karina estreou em oito de seus filmes nos anos 1960 (“Uma mulher é uma mulher”, “Bande à part”, “Viver sua vida”, “Alphaville”, “O demônio das onze horas”, “Made in USA”). Com Wiazemsky a relação foi tumultuada e o fim do casamento resultou em uma tentativa de suicídio.
Em 1971, Godard havia sofrido um grave acidente de moto que o deixou em coma por uma semana. Obrigado a fazer idas regulares em um hospital . Foi nesse período que ele começou a se relacionar com Miéville, que co-dirigiu alguns de seus filmes. Com ela, o diretor se afastou ainda mais do cinema “tradicional”, se aventurando em experimentações em vídeo e na televisão. O casamento durou mais de 50 anos.
Aparições polêmicas
As aparições públicas de Godard eram sempre marcadas por polêmicas. Na televisão francesa, provocava os apresentadores com respostas desconcertantes. A persona pública de Godard era inconfundível: sempre com um charuto na boca, a voz rouca e tranquila e um ar dândi. Em março do ano passado, ele anunciou sua aposentadoria em uma entrevista: “Estou encerrando minha vida no cinema. Estou fazendo dois roteiros e depois direi adeus ao cinema”, revelou o diretor. Os dois roteiros eram “Scenario” (“roteiro” em francês) e “Funny Wars”, que não chegaram a ser concluídos.
Da mesma forma, ele continuou provocando o público até o fim da vida com suas produções. Longas mais recentes como “Adeus à linguagem” (2014) e “Imagem e palavra” (2018) utiliza o digital de forma revolucionária, misturando literatura, colagem, pintura e história do cinema.
Fonte: O Globo