Quem é Gabriel Boric, o ex-líder estudantil que foi eleito presidente do Chile

Jovem liderança promete levar ao poder uma esquerda moderna e moderar posições em busca de grandes acordos, mas inexperiência, radicalidade de aliados e conjuntura chilena apresentam desafio para governo

Se a eleição no Chile acontecesse um ano antes, Gabriel Boric não poderia concorrer. Assim como no Brasil, para presidir o país é necessário ter no mínimo 35 anos, e o candidato de esquerda, que nasceu em 1986, só passou do sarrafo etário no dia 11 de fevereiro deste ano, 10 meses antes de ser eleito presidente neste domingo.

Até poucos meses atrás, muitos entendiam que Boric era o grande favorito para se tornar o novo ocupante do Palácio de La Moneda. A imagem do candidato se harmonizava com uma narrativa que se tornara comum  entre estudiosos e políticos no Chile: a de que, desde as grandes manifestações de outubro de 2019, o país vivia uma, ainda que conturbada, imparável onda progressista e libertária, e a direita encontrava-se e desarticulada e frágil, incapaz de oferecer real concorrência.

Jovem, preocupado com causas feministas e ambientais, oriundo do movimento estudantil, fã de rock e torcedor fanático do time de futebol da Universidade Católica: em vasta medida, o deputado barbudo e de camisas xadrez pode ser considerado um primo mais velho dos jovens manifestantes chamados “outubristas”, em seu frescor, idealismo e contradições.

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Foi a súbita ascensão de José Antonio Kast, com a possibilidade de um candidato de direita mais radical do que qualquer outro desde a redemocratização vencer as eleições, que aproximou claramente Boric, em imagem e conteúdo, de um político tradicional.

Se, até o final do primeiro turno, Boric usava o vocativo “companheiras e companheiros” em seus discursos, no segundo turno passou a dizer “chilenas e chilenos”. Se antes das eleições em geral trajava camisas de botão dobradas nos cotovelos, com uma tatuagem no antebraço à mostra, agora raramente é visto sem paletó. Se na maioria dos seus discursos no início da campanha enfatizava a necessidade de “transformações estruturais profundas”, na primeira vez em que se manifestou após o primeiro turno, quando ficou em segundo lugar, prometeu promover “as mudanças que o Chile precisa”.

Já havia diferenças importantes entre Boric e setores radicais da esquerda, que há muito o acusavam de ser parte do sistema. Em julho, quando, em um claro aceno a setores mais extremos, visitou presos das manifestações de 2019 — considerados pela militância mais ferrenha “presos políticos” —, recebeu um tapa de um dos detidos, em uma cena gravada em vídeo.

O reposicionamento foi tamanho, todavia, que o candidato agora se manifesta abertamente contra a agitação permanente. Perguntado num debate sobre a situação da Praça Itália, onde semanalmente grupos de encapuzados continuam a se manifestar e, ocasionalmente, promover tumulto e depredações, respondeu.

— A lei tem que ser cumprida e não pode haver desordens permanentes às sextas-feiras.

Questões como segurança pública, crime, imigração descontrolada e crescimento econômico foram o principal foco de sua campanha no segundo turno, para alcançar um eleitorado preocupado com essas questões.

Ao mesmo tempo, ele manteve o essencial de sua agenda. Além de promessas importantes sobre os direitos das mulheres, as minorias LGBT+ e a descentralização administrativa, seu programa se concentra em quatro reformas: garantia de acesso universal à saúde, pensões decentes sem o sistema atual administrado por empresas privadas, um sistema educacional público gratuito e de qualidade e a priorização do meio ambiente.

A dúvida entre muitos chilenos é se, sem experiência de governo nem maioria no Parlamento, frente a uma situação econômica difícil, com alto desemprego e inflação, com um país que ainda não saiu da crise política e frente a uma nova oposição extremista, ele terá como pôr essas medidas em prática se governar.

— Boric não é radicalizado, mas participa de uma aliança com setores mais radicais — disse ao GLOBO Carlos Meléndez, pesquisador do Centro de Estudos de Conflito e Coesão Social (COES). — Essa combinação entre inexperiência e radicalismo é uma combinação nefasta para qualquer candidato.

Fim do mundo

A trajetória de Boric começa bem perto do fim do mundo, em Punta Arenas, extremo sul do continente, de frente para o Estreito de Magalhães. Ali, filho de uma família de classe média alta e aluno da exclusiva British School, aos 13 anos ele se envolveu com o movimento estudantil, vindo a se tornar um dos responsáveis pela refundação da Federação de Estudantes Secundaristas de Punta Arenas.

Essa experiência o habilitou a, anos depois, exercer um papel de liderança no movimento estudantil universitário, quando já fazia Direito na Universidade do Chile, em Santiago. Primeiro integrou um coletivo chamado Esquerda Autônoma, que misturava postulados do socialismo libertário, do autonomismo e do feminismo. Em 2009, presidente do Centro Estudantil de Direito, liderou um movimento de ocupação da reitoria.

Durante as mobilizações estudantis de 2011, Boric se tornou conhecido nacionalmente. Os protestos e greves daquele ano, os maiores até então desde o retorno à democracia em 1990, opunham-se a mudanças no sistema educacional e atraíram apoio da população acima de 70%. Boric foi um dos principais porta-vozes da Confederação de Estudantes do Chile, o principal órgão estudantil do país, sendo eleito, no fim do ano, presidente do diretório estudantil da Universidade do Chile.

O pulo para a carreira de deputado federal veio em 2013. Sua candidatura, a mais votada  de Magalhães e da Antártica chilena, deu-se fora dos grandes partidos, e foi destacada no jornal patagônico El Pingüino como “a do jovem que rompeu o sistema partidário”. Em seu primeiro mandato, sua iniciativa mais notória foi um projeto de lei para diminuir em 40% o salário dos congressistas. A remuneração era então de 8,5 milhões de pesos chilenos (R$ 56 mil, em valores não atualizados), equivalente a mais de 40 vezes o salário mínimo. A proposta foi barrada no Congresso.

Em 2016, deixou a Esquerda Autônoma, alegando diferenças com a direção do movimento. Participou naquele ano da criação da Frente Ampla, que agrupa movimentos e partidos de esquerda. O aglomerado de partidos — que inclui o Convergência Social, sigla de Boric, fundada por ele em 2018 —  tem um perfil jovem e abertamente de esquerda, buscando uma estrutura descentralizada. A Frente Ampla integra, ao lado do Partido Comunista do Chile, mais à esquerda, a coalizão Aprovo Dignidade, pela qual Boric concorre.

Durante os protestos de outubro de 2019, em seu segundo mandato, Boric foi visto discutindo com membros das Forças Armadas nos arredores da Praça Itália. O deputado é considerado um dos principais responsáveis pela costura entre todos os partidos chilenos — exceto o Partido Comunista, que se absteve — do pacto que levou à convocação de um plebiscito sobre a mudança da Constituição.

Em busca dos grandes acordos

É com esse perfil de articulador de grandes acordos em prol de causas sociais, das minorias e dos direitos humanos que agora ele promete governar. Não foge de pautas polêmicas, como a defesa explícita da legalização do aborto, mas sempre insiste que seu interesse é em “propor soluções”. À diferença de muitos líderes de esquerda no continente, ele reiteradamente condena violações de direitos humanos em outros países, como Venezuela e Cuba.

No segundo turno, adicionou à sua equipe vários respeitados economistas e tecnocratas próximos à antiga Concertação, a coalizão de centro-esquerda que governou o Chile na maior parte do período desde a redemocratização. No passado, Boric criticou duramente o grupo, mas isso não o impediu de receber o apoio de virtualmente todas as mais importantes lideranças da centro-esquerda chilena, como  os ex-presidentes Ricardo Lagos e Michelle Bachelet.

Esses endossos, contudo, vieram com retribuições. Uma delas foi uma carta pública enviada à Democracia Cristã, tradicional partido de centro-esquerda, pouco antes do anúncio oficial do apoio da sigla a sua candidatura.

No texto, Boric fez uma autocrítica: “Hoje eu sei que a arrogância geracional é má conselheira, que não há virtude per se na juventude e na novidade. Um projeto político deve ser julgado por suas convicções, princípios e ações”, escreveu. “[Sei] que para realizar grandes transformações são necessários grandes acordos, que corrijam as injustiças do presente sem negar os avanços do passado. Precisamos uns dos outros para superar a crise de legitimidade e construir um país em que ninguém seja deixado de lado”.

Fonte: O Globo