Militares, fardas, equipamentos de guerra, aviões que fazem desenhos com fumaça no ar. Assistir aos desfiles nas capitais do país, seja presencialmente, seja pela televisão, faz parte da programação de muitos brasileiros no dia 7 de setembro. Os desfiles marcam as comemorações oficiais da Independência do Brasil, praticamente desde a proclamação, em 1822, mas nem sempre tiveram o mesmo formato. Eles foram se transformando ao longo do tempo, assim como os significados que carregam e as disputas que representam.
“Os desfiles sempre ocorreram, mas não de maneira planejada, organizada e centralizada como conhecemos hoje. Havia desfiles por diversas razões e várias motivações, mas somente a partir da República [em 1889], que começam a ter a organização mais próxima do que conhecemos hoje. Foi com Getúlio Vargas, na década de 1930, que passaram a se constituir como ato de construção cívica, com uma grande participação militar, mas também com grande participação civil, principalmente nos estados e municípios”, explica o professor emérito do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF) Eurico de Lima Figueiredo.
O professor diz que os desfiles não são exclusividade do Brasil. A inspiração de Vargas, por exemplo, é o estadista e líder militar francês Napoleão Bonaparte. Vargas governou o Brasil em dois períodos: entre 1934 e 1945, quando o mundo passava pela Segunda Guerra Mundial, e 1951 e 1954. “Ele estava muito atento à necessidade de mantermos a integridade nacional, estava ligado à ideia de que tínhamos que cultivar nossa nação, nosso nacionalismo, até porque passa a cultivar, em relação aos Estados Unidos e Europa a ideia de que o Brasil poderia ter sua própria vontade”, diz.
Para o público nacional, era importante, segundo Figueiredo, cultivar a ideia de força.
“A ideia da força é atrativa para o imaginário. Você não se identifica com a fraqueza, você se identifica com a força. Essa força que nos representa no nosso imaginário”.
Celebrações e pompa
De acordo com a historiadora Adriana Barreto, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), os desfiles foram mudando ao longo dos anos. Segundo ela, o historiador Hendrik Kraay, que estudou a invenção do Grito do Ipiranga como dia da independência do Brasil, mostra que no ano seguinte, em 1823, a data de 7 de setembro já era oficialmente reconhecida com festejos no Rio de Janeiro.
Além disso, Barreto diz que o Condy Raguet, embaixador dos Estados Unidos no Brasil, registrou que o 7 de setembro de 1823 foi celebrado na corte do Rio de Janeiro “com pompa militar, civil e religiosa”. “Mas, a gente precisa sempre ficar atento à historicidade dessas informações e fatos. Primeiro ponto: naquela época, todas as grandes festas cívicas eram celebradas recorrendo-se a elementos militares, civis e religiosos. Em todas elas, sempre tinha uma parada militar, tiros de artilharia e um Te Deum, um ofício de ação de graças. Outro ponto importante é o significado de ‘militar’ no início do século XIX”, ressalta.
Barreto explica que há um conjunto de palavras desse universo (tais como: militar, exército, forças armadas, bem como a maior parte das patentes de oficiais) que geram muitos problemas de interpretação. “Se a gente consulta um dicionário da época, a palavra militar nas primeiras décadas do século XIX só existia como adjetivo – por exemplo, “vida militar” e “ordens militares” – ou como verbo, “vitórias em que alguns militaram”. Ninguém se identificava ‘eu sou um militar’, como uma profissão. Já a palavra exército, no dicionário, tinha apenas uma definição: ‘grande número de tropas juntas’”, diz.
Dessa forma, de acordo com a historiadora, as paradas militares se referiam a um universo diferente do atual. O exército incluía as tropas de linha, as milícias e as ordenanças. As duas últimas se tratavam de cidadãos armados. As milícias ainda eram treinadas, mas as ordenanças, não. “Então, em uma “parada militar”, era possível encontrar um número grande de pessoas comuns, que exerciam vários ofícios e que, após a Constituição de 1824, foram definidas como cidadãos brasileiros”.
Comemorações e disputas
Para o professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), João Paulo Pimenta, por se tratarem de comemorações oficiais, os desfiles, atualmente, não têm um apelo popular grande, principalmente porque estão costumeiramente associados com as Forças Armadas e por terem sido utilizados pelo regime autoritário durante a ditadura militar de 1964 a 1985.
“Eles [os desfiles] são um dispositivo de identidade, de reprodução do pertencimento dos indivíduos a uma coletividade. É por isso que os desfiles continuam existindo mesmo que eles não sejam muito populares, com algumas exceções. Existem desfiles que são bastante populares no Brasil, como o 2 de Julho na Bahia, que também rememora a Independência do Brasil. Este é um desfile tradicionalmente popular, mas o 7 de Setembro, não”, diz o professor.
Pimenta observou ainda que nos últimos anos no Brasil o dia 7 de Setembro vem sendo disputado por diferentes grupos políticos e setores da sociedade. “O que aconteceu nos últimos anos é que o governo de Jair Bolsonaro manipulou numa escala pouco comum esses desfiles para o seu próprio proveito. Lembrando que em 2021 o desfile foi cancelado e ocorreu um ato em favor do então presidente e em 2022 existiu esse desfile de forma praticamente privada, de campanha de sua tentativa de reeleição”, diz.
O professor defende que há outras formas de comemorar a independência. Para isso, segundo ele, seria necessário, em primeiro lugar, diminuir progressivamente o papel das Forças Armadas no evento, podendo até mesmo eliminá-las do desfile.
“Em segundo lugar, promovendo uma série de ações nos estados, valorizando as datas locais da Independência, como na Bahia, no Maranhão, no Pará, e articular isso tudo numa agenda de comemorações. E em terceiro lugar chamar diversos setores da sociedade com o maior número possível de representação popular”.
Adriana Barreto também diz acreditar que seja necessária uma mudança na relação das Forças Armadas com as estruturas de poder. “O que vemos hoje com clareza, após essa politização escancarada das Forças Armadas [ocorrida recentemente no governo de Jair Bolsonaro], é que essa relação precisa mudar, é viciosa e se reproduz geracionalmente. As Forças Armadas são parte da burocracia do Estado. A relação não pode ser de mundos (militares e civis) apartados e em oposição. Como burocracia, e burocracia armada, ela precisa estar rigorosamente submetida ao poder civil. A relação não pode ser horizontal, menos ainda de oposição. Do contrário, a sociedade pode se tornar refém daqueles que deveriam protegê-la, de seus próprios militares”, defende.