A regulamentação da consulta obrigatória aos povos tradicionais em processos de licenciamento ambiental se tornou o centro de um embate em Minas Gerais. Enquanto o governo estadual anuncia ter dado um passo pioneiro no país, diferentes comunidades indígenas, quilombolas, geraizeiras e veredeiras acusam a medida de limitar a autonomia sobre seus territórios. As divergências também envolvem expectativas e preocupações em torno do Projeto Bloco 8, empreendimento minerário no norte de estado cujo processo de licenciamento recebeu questionamentos em ações judiciais movidas pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Defensoria Pública da União (DPU).
A consulta obrigatória aos povos tradicionais sobre medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los está prevista na Convenção 169, elaborada no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um dos braços da Organização das Nações Unidas (ONU). Em vigor no mundo há 30 anos, ela foi aprovada no Congresso brasileiro em 2002, por meio do Decreto Legislativo 143, e promulgado em 2004, por meio do Decreto Presidencial 5.051.
Tratados internacionais ratificados no Brasil são incorporados à legislação do país. Dessa forma, as comunidades devem ser ouvidas sobre licenciamento de empreendimentos, implementação de políticas públicas de educação e de saúde, atividades que envolvam a salvaguarda de seus costumes da sua cultura, entre outras medidas que afetem seus territórios. Conforme fixado pela OIT, a consulta precisa ser prévia, livre e informada, isto é, deve ocorrer antes de qualquer decisão, deve ser realizada sem pressões e violências e deve ser marcada pela transparência e pela acessibilidade a todos os dados pertinentes.
A regulamentação desse processo em Minas Gerais se deu no dia 5 de abril por meio da publicação da resolução conjunta 1/2022 da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Os órgãos estaduais fixaram que a consulta deve ocorrer antes da formalização do pedido de licenciamento e um relatório constando informações sobre as reuniões e deliberações dos povos e comunidades ouvidos passa a ser requisito para o prosseguimento da análise.
Caso não sejam consultadas, as comunidades interessadas poderão apresentar uma petição aos órgãos ambientais, que irão verificar se o empreendimento afeta seu território. De acordo com o governo mineiro, nenhum outro estado possui uma regulamentação tão aprofundada. “Demonstra nosso compromisso para o cumprimento das normas e princípios do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sendo esta uma demanda antiga da comunidade”, disse subsecretário de direitos humanos da Sedese, Duílio Campos, em declaração ao site do próprio órgão.
Manifesto público
Depois de três dias, mais de 100 entidades que representam ou apoiam as diferentes populações tradicionais pediram a revogação da medida. Elas assinaram um manifesto público disponibilizado pelo portal eletrônico do Coletivo Margarida Alves, que desde 2012 oferece assessoria jurídica popular a diferentes comunidades. Segundo o texto, a resolução dá apenas uma aparência de diálogo, mas fere a Convenção 169 porque não assegura que a consulta ocorra livre de pressões e violências, não reconhece as formas de representação e deliberação de cada comunidade e não garante a autonomia sobre o território.
“Tudo foi feito sem participação popular”, diz a advogada Larissa Vieira, integrante do Coletivo Margarida Alves. Para ela, há uma contradição em regulamentar o direito de consulta sem ter sido realizada nenhuma consulta, o que já estaria em desacordo com o tratado internacional. Uma das principais contestações envolve o papel dado à empresa interessada no licenciamento. De acordo com o artigo 3º, a responsabilidade de realizar a consulta será do empreendedor nos casos em que os possíveis impactos são provenientes de projetos desenvolvidos pela iniciativa privada.
“Segundo a Convenção 169, o Estado é o responsável pelo processo de consulta, mediante os procedimentos apropriados que respeitem a autonomia dos povos. Essa responsabilidade não pode ser delegada a uma empresa privada. O empreendedor tem interesses e deixá-lo conduzir esse processo é uma forma de agressão aos direitos dos povos, pois ele terá permissão para estar ali no território cotidianamente pressionando. A consulta deixa de ser livre”, sustenta Larissa Vieira.
O manifesto também traz críticas ao parágrafo 8º do artigo 1º, segundo o qual caberá aos órgãos estaduais decidir sobre os casos onde o consenso não seja alcançado. O receio é de que seja concedido aval mesmo para empreendimentos desaprovados pelas comunidades consultadas.
Em nota, o governo mineiro afirma que a resolução não retira dos povos a decisão final sobre o uso de seu território. “Pelo contrário, assegura justamente que as comunidades sejam consultadas e digam como querem ser ouvidas antes do processo de licenciamento, garantindo a elas todas as informações necessárias sobre os eventuais impactos”, diz o texto assinado conjuntamente pela Sedese e pela Semad.
Os dois órgãos estaduais sustentam que a regulamentação é fruto de um diálogo que vem sendo feito com a sociedade há anos. Alegam ainda que não há permissão para que as empresas adentrem os territórios sem o consentimento da população local e acrescentam que a consulta realizada pelo empreendedor deverá se dar por uma consultoria especializada contratada, sob supervisão da Sedese e acompanhamento de outras instituições como o Ministério Público e a Defensoria Pública.
A Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), no entanto, informou que estuda medidas para proteger os direitos coletivos das comunidades tradicionais afetados pela resolução e afirmou que os “vícios são inúmeros”. Um procedimento administrativo já foi aberto para analisar as possibilidades de questionamento.
Autodeterminação
As entidades que assinaram o manifesto também acusam a resolução de violar o princípio de autodeterminação dos povos. Isso porque o artigo 1º considera que as comunidades quilombolas devem ser certificadas pela Fundação Palmares, as indígenas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e as demais pela Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais em Minas Gerais (CEPCT/MG).
“Os povos existem independente do reconhecimento do Estado. O artigo 1º da resolução fixa que a consulta só se aplica aquelas comunidades que pedissem reconhecimento formal do Estado. Isso fere de morte a Convenção 169, que estabelece o princípio da autodeterminação dos povos. É uma violação inclusive de entendimentos jurisprudenciais já muito superados”, afirma Larissa Vieira. Ele lembra, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em fevereiro desse ano que a Funai não pode negar proteção a terras indígenas ainda não homologadas.
De acordo com a Sedese e a Semad, não há violação do direito à autoatribuição já que a resolução observaria dispositivos constitucionais. Os órgãos entendem que o Brasil possui procedimento próprio para dar reconhecimento público à autodeterminação, por meio da certificação dos povos e comunidades tradicionais pelos órgãos com competência legal.
Nos círculos acadêmicos, uma nota técnica apontou que a resolução “não somente fere os direitos constituídos pela Convenção 169 da OIT, segundo a qual a identificação enquanto povo e comunidade tradicional é autoatributiva e independe do reconhecimento por parte do Estado, mas também exclui uma quantidade expressiva de povos e comunidades tradicionais que ainda lutam pelo seu reconhecimento”. A análise é assinada pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e por grupos de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
Os pesquisadores observam que a resolução faz menções a legislações que garantem o autorreconhecimento ao mesmo tempo em que restringe o reconhecimento. “O texto da resolução é ambíguo, afirmando direitos que no momento seguinte são flexibilizados”, diz um trecho da nota.
No Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), criado em 2004 e atualmente vinculado ao Ministério da Cidadania, há representação de 28 grupos étnicos: indígenas, quilombolas, povos de terreiro, pantaneiros, extrativistas, ribeirinhos, pomeranos, caiçaras, geraizeiros, ciganos, entre outros. Nem todas as comunidades dessas populações gozam de reconhecimento formal. No caso dos quilombolas, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimou em 2020 existirem no país 5.972 comunidades em 1.674 municípios, mas a Fundação Palmares certifica atualmente apenas 3.495 quilombos.
Protocolos de consulta
Para lutar pelos seus direitos, muitas comunidades têm criado, nos últimos anos, seus protocolos de consulta prévia, livre e informada. Trata-se de um documento formal que estabelece as normas para ouvir estas populações, fixando seus próprios ritos. “O direito à consulta não necessita de regulamentação do Estado para ser aplicado. Os protocolos de consulta construídos pelas comunidades são capazes de regulamentar o processo”, afirma Larissa.
Segundo ela, ainda que reconheça o direito de cada comunidade elaborar as suas próprias regras, a resolução impõe prazos pré-definidos que ignora as peculiaridades de cada povo. De acordo com o artigo 13º, comunidades que ainda não tivessem seu protocolo de consulta e quisessem elaborá-lo, deveriam conclui-lo em 45 dias. Já a resposta à consulta deve ser apresentada em até 120 dias.
Embora já existam diferentes decisões favoráveis aos povos tradicionais que levam em conta os protocolos de consulta, muitas vezes eles são ignorados tanto pelos órgãos públicos como pelos tribunais. No ano passado, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) organizou um seminário online sobre o tema para debater o cenário atual. Há uma incompreensão da comunidade jurídica na visão de Carlos Marés, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Segundo ele, os povos têm direito de veto às medidas que afetam seu território.
“A consulta não é exatamente um direito. É uma decorrência do direito de existência e de ter uma organização social própria como diz a Constituição Federal é essencial. A Convenção 169 ratifica esse direito. Se fosse apenas para dar consentimento, não seria uma consulta livre. Claro que os Estados podem mudar seus projetos e os povos podem pedir mudanças e estabelecer condições. Mas também há questões como destruição e diminuição do território que são inegociáveis para os povos. E os protocolos também servem para estabelecer os limites do consentimento”, afirmou.
Para a pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Peru e do Instituto Internacional de Direito e Sociedade (IIDS), Raquel Yrigoen Fajardo, a consulta não pode ser vista como mera formalidade que o Estado deve cumprir para fazer o que quiser. “Essa consulta deve ser antes da aprovação da medida. Isso é muito importante porque temos visto concessões a mineradoras, madeireiras, petroleiras, além de ações em educação e saúde, sem consulta prévia. E muitas vezes as cortes dizem: ‘Não há problema. Pare a concessão, façam a consulta e depois continuem’. Isso não é possível. Se não houve consentimento prévio, todo o ato legislativo ou administrativo é nulo”, observa Raquel.
Mineração
As divergências em torno da resolução alcançaram as discussões acerca do megaempreendimento minerário da empresa de capital chinês Sul Americana de Metais (SAM), subsidiária da Honbridge Holdings. Segundo o Coletivo Margarida Alves, foi em meio ao turbulento processo de licenciamento desse projeto que a Semad e a Sedese anunciaram a regulamentação da consulta aos povos tradicionais. No manifesto, as organizações que representam os povos tradicionais consideram que as novas regras contribuem para acelerar a implementação de grandes projetos de exploração mineral.
Uma semana antes da publicação da resolução, foram suspensas audiências públicas agendadas para as cidades de Grão Mogol e Fruta de Leite, ambas localizadas na região visada pela SAM. O cancelamento se deu após o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) recomendar que elas não ocorressem até que as comunidades tradicionais fossem previamente consultadas conforme determina a Convenção 169.
Originalmente chamado Projeto Salinas, depois Projeto Vale do Rio Pardo e atualmente de Projeto Bloco 8, o empreendimento envolve a instalação de um complexo para explorar jazidas nos municípios mineiros de Grão Mogol e Padre Carvalho. Inicialmente, foi prevista a construção de barragens de rejeitos, uma usina de beneficiamento de minério e um mineroduto de 480 quilômetros que atravessaria 21 cidades e chegaria até Ilhéus, no litoral baiano.
Em janeiro de 2020, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e o Ministério Público Federal (MPF) obtiveram uma decisão judicial suspendendo o processo de licenciamento. Ambos apontaram um fracionamento indevido na análise e manifestaram preocupação com as dimensões do empreendimento. Os reservatórios previstos no projeto são bem maiores do que as barragens da Samarco em Mariana (MG) e da Vale em Brumadinho (MG), envolvidas nas tragédias que ocorreram em Minas Gerais nos últimos anos. Além disso, o empreendimento já havia sido considerado inviável pelo Ibama em 2016.
Segundo o MPMG e o MPF, o projeto foi reapresentado sem o mineroduto que chegaria até a Bahia. A medida buscaria afastar o órgão federal da análise. Dessa forma, prevendo intervenções apenas em Minas Gerais, foi possível submetê-lo à Semad com o nome de Bloco 8. O MPF e o MPMG, no entanto, constataram que o mineroduto continuava nos planos e seria construído por outra empresa, da qual a própria SAM figura como acionista.
No ano passado, novas tratativas abriram espaço para um possível entendimento. A mineradora concordou em contratar equipes técnicas indicadas pelo MPMG para analisar aspectos ambientais, sociais e de engenharia do empreendimento. Uma mesa de negociação também foi aberta entre a SAM e o MPF. Dessa forma, a tentativa de conciliação paralisou o processo judicial. Mas um novo despacho do juiz responsável pelo caso registrou, em fevereiro desse ano, que tanto a mineradora quanto o MPF informaram não ter havido avanço para uma solução conciliatória.
Uma outra ação, movida pela pela DPU em conjunto com a DPMG no ano passado, também está em tramitação. Os defensores públicos contestam a abertura do processo de licenciamento sem que tenha sido realizada a consulta prévia às comunidades geraizeiras do Vale das Cancelas, no município de Grão Mogol. A questão ainda não foi analisada. Já as audiências públicas canceladas no mês passado nas cidades de Grão Mogol e Fruta do Leite foram remarcadas pela Semad para os dias 10 e 11 de maio, sob respaldo de uma decisão da Justiça Federal proferida no dia 28 de março.
Projeto prioritário
No governo de Minas, o empreendimento passou a ser tratado formalmente como prioritário em 2017. No ano passado, o governo federal adotou medida similar, qualificando-o no âmbito da Política Pró-Minerais Estratégicos do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). A decisão coube a um comitê interministerial criado pelo Decreto 10.657/2021 para definir projetos que receberiam apoio ao licenciamento ambiental.
Por meio de nota, a Semad negou que a resolução conjunta 1/2022 ajuda a acelerar o processo de licenciamento ambiental do empreendimento da SAM. Segundo o órgão ambiental, por se tratar de um projeto considerado prioritário, ele encontra-se em análise na Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri), a qual se encarregará de avaliar sua viabilidade técnica da mesma forma como ocorre com todas as iniciativas da mesma natureza.
Procurada pela Agência Brasil, a SAM disse que aguardava desde 2019 um procedimento que pudesse disciplinar uma forma de consulta às comunidades tradicionais. “A resolução cumpre este papel, por isso a entendemos como um avanço em relação ao cenário anterior”, registra nota encaminhada pela mineradora. Ainda segundo o texto, os novos procedimentos afetam vários projetos públicos e privados, além de medidas legislativas e administrativas. “Querer vinculá-la ao projeto da SAM é um erro. Entendemos, todavia, que é uma evolução em relação a alguns que pretendiam procrastinar o debate de forma a se valerem disso em seus discursos”, acrescenta a mineradora.
Ela sustenta também que o empreendimento, além de envolver altos investimentos e gerar empregos, inclui contrapartidas econômicas e sociais. “A construção da barragem de água do Rio Vacarias permitirá a disponibilização de água às comunidades locais. Haverá uma quantidade de água disponível equivalente ao abastecimento de mais de 640 mil pessoas por dia, superior à população de Montes Claros. A SAM vai também realizar, em parceria com o governo do estado, um projeto de irrigação para apoio à agricultura familiar local. Além disso, a empresa pretende fomentar o potencial energético da região. A partir do 5º ano de operação vai utilizar 100% de energia renovável, o que poderá gerar novos negócios”, finaliza a nota.