Quando o acordo de reparação da tragédia em Brumadinho (MG) foi assinado, em fevereiro de 2021, a mineradora Vale, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o Ministério Público Federal (MPF) e o governo mineiro adotaram discursos otimistas em relação às possibilidades de participação da população atingida no encaminhamento de medidas a serem implementadas.
Essa era uma das principais reivindicações das vítimas, que pediam mais voz nas decisões. Passado quase um ano, não há consenso em torno de um balanço parcial. Um processo de consulta pública previsto no acordo foi implementado recentemente.
A tragédia em Brumadinho completa três anos nessa terça-feira (25). No episódio, a ruptura de uma barragem da mineradora Vale deixou 270 mortos e provocou degradação ambiental em diversos municípios mineiros na bacia do Rio Paraopeba.
Apenas em fevereiro do ano passado foi selado o acordo de reparação, que previu a destinação do valor de R$ 37,68 bilhões para indenização dos danos coletivos. Optou-se por manter as discussões das indenizações individuais a parte, em negociações judiciais e extrajudiciais que já estavam em curso.
Entrou no acordo uma série de medidas que incluem investimentos socioeconômicos, ações de recuperação socioambiental, ações voltadas para garantir a segurança hídrica, melhorias dos serviços públicos e obras de mobilidade urbana, entre outras.
A estrutura de governança previu que R$ 11,06 bilhões seriam destinados a ações que ficaram sob gestão do Executivo mineiro, entre elas a construção de um rodoanel, que contornará a região metropolitana de Belo Horizonte e é considerada uma das intervenções previstas de maior impacto.
Os demais R$ 26,62 bilhões envolvem algumas medidas sob responsabilidade da mineradora como obras emergenciais, remoção de rejeitos, aluguel de moradias para os desabrigados, fornecimento de água, restauração florestal, entre outros. A Vale se comprometeu também com alguns repasses para o Corpo de Bombeiros, para o combate à pandemia de covid-19 e para outras iniciativas de saúde pública.
Dentro desses R$ 26,62 bilhões, foram reservadas cifras para uso conforme definição da população direta e indiretamente atingida. Um total de R$ 4 bilhões foi assegurado a projetos para Brumadinho e para outros 25 municípios da bacia do Rio Paraopeba, que foram afetados.
Desse montante, 15% são para a chamada “resposta rápida” que envolvem demandas mais urgentes apontadas pelos municípios. Para o uso dos outros 85%, que totalizam R$ 3,4 bilhões, foi fixada a necessidade de apreciação popular.
Participação popular
Em outubro do ano passado, o governo de Minas Gerais e o MPMG lançaram uma consulta popular com esse intuito. A população foi convocada a votar, entre os dias 5 e 12 novembro, entre 3.114 propostas de projetos apresentados pelas assessorias técnicas que dão suporte aos atingidos e pelas prefeituras.
O processo se deu por meio da internet e de um aplicativo para celulares. Estavam aptos a participar, os 734 mil eleitores dos 26 municípios atingidos. O resultado já foi divulgado em uma plataforma criada especificamente para este fim.
Segundo a Vale, a consulta mobilizou mais de dez mil participantes. “A iniciativa permitiu que moradores das regiões impactadas pudessem priorizar as mais de três mil propostas de melhorias enviadas por prefeitos e assessorias técnicas. Agora, as instituições de Justiça analisam e organizam os resultados antes de enviar para detalhamento e execução da Vale. No final de outubro, a Fundação Getúlio Vargas foi selecionada pelos compromitentes para auditar esses projetos”, informa a mineradora.
O número de participantes foi considerado baixo por entidades que representam as vítimas. Segundo Tatiana Rodrigues de Oliveira, membro da comissão de atingidos da cidade de São Joaquim de Bicas e moradora da comunidade Vale do Sol, o fator tecnológico foi o principal entrave. “Onde eu moro não tem acesso à internet. Muitas comunidades são rurais. Então muita gente deixou de participar”, pondera.
Representante do MPF nas discussões em torno do acordo, o procurador da República, Carlos Bruno Ferreira da Silva, considera que a construção do processo de consulta popular tem sido um desafio e envolve uma reflexão sobre o exercício da democracia na reparação da tragédia, que pode se dar de forma direta ou de forma representativa. Sua avaliação é positiva.
“A consulta pública, como um exercício da democracia direta, é um absoluto sucesso na medida do possível. Não é uma eleição propriamente dita, já que não se utiliza a estrutura do TRE [Tribunal Regional Eleitoral], como as urnas eletrônicas. Mas usando os meios tecnológicos disponíveis, conseguimos que a população de todos os municípios da região opinasse e escolhesse os projetos considerados mais adequados para a aplicação de um dinheiro que, no fundo, é dela”, diz.
Um dos coordenadores do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), Santiago Matos, considera que a consulta pública possui limites quando se trata de uma participação efetiva:
“Não exige um processo de construção de propostas e pleno diálogo com a população para identificar quais os projetos que são necessários para atender a demanda da vida do povo. Os atingidos têm espaço apenas de ser consultados e as propostas são construídas, implementadas e avaliadas sem a participação direta. Portanto, essa maneira de participação é insuficiente para representar a necessidade de protagonismo do atingido no processo de reparação e desenvolvimento do território”.
Negociação
Segundo Santiago, já não é possível falar em participação plena pela forma como se deu o processo que levou ao acordo, com uma mesa de negociação em que não houve a presença de representantes das vítimas. Em todas as audiências marcadas para as negociações, ocorridas na sede do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), os atingidos protestaram do lado de fora do edifício.
Uma vez selado o acordo entre a Vale, as instituições de Justiça e o governo mineiro, entidades representativas das vítimas ainda tentaram, sem sucesso, suspender a homologação do acordo com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF).
A contestação foi protocolada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), pelo Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), pela Associação Nacional dos Atingidos por Barragens (ANAB) e pelo Centro de Alternativas Socioeconômicas do Cerrado (CASEC).
As entidades alegaram violação de diversos preceitos fundamentais que asseguram, por exemplo, a participação dos atingidos e a necessidade de aprovação legislativa para esse tipo de acordo.
Questionou-se ainda o uso da cláusula de confidencialidade nas negociações, de forma que apenas os participantes das tratativas tiveram conhecimento dos detalhes. Também não foram tornados públicos, previamente, os projetos que estavam em discussão.
A inclusão da obra do rodoanel, por exemplo, é um ponto de crítica. Santiago considera que os recursos garantidos para a intervenção, que somam R$ 4,4 bilhões, deveriam ser destinados para o enfrentamento de problemas sociais decorrentes do modelo de exploração econômica adotado pelos governos e pela mineração.
Para ele, faltam políticas públicas. “Que este recurso sirva para resolver os problemas dos atingidos pelas enchentes. Moradia, escolas, estradas, saúde, entre outras questões”.
Apesar de reconhecer a falta de participação popular na negociação, o procurador-geral de Justiça do MPMG, Jarbas Soares Júnior, avalia que o acordo beneficiou os atingidos e considera que sua execução pode ocorrer da forma mais ampla e democrática possível:
“Se tratava de um processo judicial movido contra a Vale. A tramitação se deu em sigilo por decisão do tribunal e não do Ministério Público. Desde o início, nós dialogamos com os atingidos e buscamos atendê-los com projetos de recuperação econômica e de transferência de renda. E as ações individuais continuam correndo. Não há impedimento para que eles tenham seus direitos garantidos em ações individuais”.
Uma das preocupações manifestadas pelos atingidos e encampadas pelo MPMG e pelo MPF girou em torno do modelo de governança: buscou-se um caminho diferente da tragédia de Mariana (MG), na qual 19 pessoas morreram em novembro de 2015.
Para reparar os danos causados pelo rompimento da barragem da Samarco nas dezenas de municípios da bacia do Rio Doce, um acordo foi firmado prevendo a criação de uma entidade privada para gestão de 42 programas. Com recursos da mineradora responsável e das suas duas acionistas Vale e BHP Billiton, a Fundação Renova assumiu a condução dos trabalhos.
Passados mais de seis anos, um novo acordo para a tragédia de Mariana está sendo discutido no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), enquanto a Renova é alvo de uma ação judicial movida pelo MPMG, que pede sua extinção por considerar que ela privilegia os interesses das mineradoras em detrimento do direito dos atingidos. Por sua vez, a Fundação Renova alega agir com transparência e sob auditoria de instituições externas independentes.
No caso de Brumadinho, no entanto, o MAB se posicionou contra a criação de uma entidade similar por considerá-la um entrave para a participação e celebrou a decisão final. “Os direitos apresentados pelo acordo, mesmo que limitados, foram resultados da luta e reivindicação dos atingidos e do movimento”, pontua Santiago.
Próximos passos
Um novo debate em torno dos mecanismos de participação na reparação da tragédia de Brumadinho já está desenhado. O acordo também carimbou um total de R$ 3 bilhões que devem ser voltados para projetos comunitários, a serem definidos em um processo conduzido com o suporte do MPMG, do MPF e da Defensoria Pública do estado.
Trata-se de um montante com objetivo distinto dos R$ 4 bilhões submetidos à consulta pública, os quais beneficiarão a bacia do Rio Paraopeba de forma ampla e todos os moradores com título de eleitor das 26 cidades estavam aptos a se manifestar pela internet, mesmo os que vivem em bairros que foram pouco afetados.
Já no caso dos R$ 3 bilhões, as medidas custeadas deverão favorecer as comunidades que sofreram impactos diretos. A forma de elaboração dos projetos, no entanto, ainda não está definida e será assunto de discussão entre as instituições de Justiça e os moradores da região.
“O que posso dizer é que a grande preocupação do MPF é que esse dinheiro não seja apropriado por pessoas que falam em nome dos atingidos mas que em realidade só representam seus próprios interesses”, diz o procurador Carlos Bruno.
Para o MAB, é imprescindível o protagonismo dos atingidos em todo o processo de decisão, implementação e avaliação dos programas e projetos, respeitando as especificidades de suas formas de organização.
“Só com a participação dos sujeitos que são sujeitos de fato da reparação é que se vai ter eficiência nos projetos que atendam às reais demandas do território atingido”, diz Santiago.
As assessorias técnicas escolhidas pelos próprios atingidos estão trabalhando na elaboração de um formato de discussão com as comunidades para construção de uma proposta de participação. Um cronograma prevê rodadas de diálogo até o mês de junho.
“A iniciativa sobre a estrutura de participação, conforme prevê o acordo, precisa ser apresentada pelos atingidos”, diz Luiz Otávio Ribas, coordenador institucional das Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), entidade que dá suporte aos moradores em seis municípios.
Já a comissão de atingidos de São Joaquim de Bicas reivindica que a verba seja administrada pelas vítimas. “Cada comunidade é que tem que dizer como será usado esse dinheiro”, cobra Tatiana.
Ela entende que os recursos são limitados para atender todas as regiões e teme que eles não sejam suficientes para revitalizar as comunidades. Ao mesmo tempo, considera que os atingidos têm capacidade de fazer um uso mais eficiente, já que conhecem os problemas que enfrentam no dia a dia. “O valor menor ficou para as comunidades e o valor maior para o Estado”, lamenta.
Informar para participar
Um mecanismo também associado ao processo participativo são as assessorias técnicas independentes que devem ser prestadas aos atingidos por entidades que eles escolherem. O custo dessas atividades é de responsabilidade da mineradora.
O direito de contar com esse serviço foi conquistado pelos atingidos da tragédia de Mariana e incluído inicialmente em acordos firmados entre a Samarco, o MPMG e o MPF.
Após a ruptura da barragem em Brumadinho, as vítimas do novo desastre também conquistaram esse direito. Ele foi previsto no acordo de reparação. Ainda em 2019, moradores de Brumadinho reunidos em assembleia escolheram a Aedas.
A mesma entidade foi selecionada em junho pelos moradores da região composta pelos municípios mineiros de Mário Campos, São Joaquim de Bicas, Betim, Igarapé e Juatuba. Em outras cidades, foram escolhidos o Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab) e o Instituto Guaicuy.
As assessorias contam com profissionais de áreas variadas, como direito, sociologia, psicologia, arquitetura, engenharia, agronomia, etc. Elas devem atuar para garantir o direito à informação às pessoas atingidas e sua participação nos processos de reparação.
A medida busca assegurar que as vítimas das tragédias estejam munidas de dados técnicos para pleitear seus direitos. As entidades podem ainda subsidiar as instituições de Justiça na produção de provas sobre os danos causados pelo rompimento da barragem, sendo portanto uma voz dos atingidos junto a instâncias formais.
“A participação precisa da informação confiável. É um pressuposto da participação informada. Assessorias técnicas como a Aedas devem atuar como facilitadoras desse processo, seja na reunião das informações oficiais, seja na produção de dados”, explica Luiz Otávio.
Ele avalia que essa estrutura está funcionando melhor na bacia do Paraopeba do que na bacia do Rio Doce, onde nem todos os atingidos estão amparados por assessorias técnicas. Dessa forma, a Fundação Renova acabaria sendo, muitas vezes, a única fonte de informação.
No entanto, divergências sobre valores e escopo de trabalho chegaram a travar as contratações de assessorias técnicas até março de 2020, quando a Justiça mineira determinou que a Vale depositasse R$ 8 milhões por mês para pagar tais assessorias, pagando ainda seis meses anteriores anteriores (R$48 milhões), retroativamente.
A mineradora interpôs um recurso questionando os valores e a necessidade dos trabalhos propostos pelas entidades, mas a decisão foi confirmada.
Em seu portal eletrônico, a Aedas chama atenção para o fato de que a participação dos atingidos se relaciona com a participação de instituições independentes nos levantamentos técnicos, que apresentam dados importantes.
Nesse sentido, a entidade observa um aspecto do acordo associado ao envolvimento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que foi designada em 2020 para assumir a tarefa de conduzir perícias determinadas judicialmente.
Para isso, um laboratório de ponta foi inaugurado no ano passado para este fim. Também foram estabelecidas 67 chamadas públicas através das quais pesquisadores da instituição poderiam se candidatar para conduzir os trabalhos que envolviam coleta e análises de amostras de animais domésticos, de solo e rejeito, de águas superficiais e subterrâneas, entre outras.
No entanto, com a assinatura do acordo, houve mudanças significativas: os escopos da maioria dos estudos foram alterados. “Das 67 chamadas, apenas seis permaneceram sem modificações em seu escopo, ou seja, as investigações não tiveram suas finalidades alteradas. Desse total, 23 chamadas foram extintas e 38 chamadas e subprojetos correlacionadas ao risco à saúde humana e ecológico foram aglutinadas e serão reajustadas a um escopo específico”, observa a Aedas.