“Solicitamos ao povo que se retire desse local porque estão correndo um grande risco de ser atingido pelos escombros que se desprendem do prédio. Os bombeiros nesse momento estão atirando grandes jatos d´água através da escada magirus para resfriar o local onde as pessoas estão ilhadas. Aos poucos, essas pessoas estão sendo salvas pelos soldados do Corpo de Bombeiros, que estão colocando em risco suas próprias vidas”.
Foi assim que, na manhã do dia 1º de fevereiro de 1974, há exatos 50 anos, o então repórter Milton Parron narrou aos ouvintes da Jovem Pan o que estava vivenciando na frente do Edifício Joelma, instalado ao lado do atual Terminal Bandeira e da Câmara dos Vereadores, no centro da capital paulista. Numa época em que o rádio era uma das principais fontes de informação para a população brasileira e o mais rápido a dar a notícia, Parron foi um dos primeiros jornalistas a chegar ao local.
“Estamos fazendo um apelo em nome do Corpo de Bombeiros para que firmas particulares, que tenham caminhões-pipa, venham a este local auxiliar no combate às chamas. Dentro de instantes nós voltaremos a manter contato com os senhores, relatando sobre o incêndio que está tomando completamente conta do edifício da Rua Santo Antônio, 212. No momento em que outra pessoa, lamentavelmente, atira-se do alto do edifício, estatelando-se em plena Rua Santo Antônio. E no momento em que uma jovem está sendo salva”.
Aos fundos dessa narração é possível ouvir as palmas da população, celebrando mais um salvamento feito pelos bombeiros naquele que foi considerado um dos maiores e mais graves incêndios urbanos do mundo, com 181 mortes e mais de 300 feridos.
O Edifício Joelma, atualmente chamado de Edifício Praça da Bandeira, é um prédio comercial de 25 andares, sendo que os dez primeiros são garagem. O incêndio teve início em um ar-condicionado do 12º andar, em uma das salas que era ocupada pelo Banco Crefisul. Isso aconteceu por volta das 8h40 de uma sexta-feira chuvosa e de muitos ventos em São Paulo. Com salas de escritórios acarpetadas, cortinas, madeira, hidrantes sem água e muito vento, as chamas se alastraram rapidamente por todo o prédio, que não tinha saída de emergência e sequer portas corta-fogo. Parron chegou ao local por volta das 8h55.
“Nesse dia, no horário do início do incêndio do Joelma, eu estava cobrindo trânsito. Eu já estava na rua. Eu estava cobrindo o trânsito na Avenida 23 de Maio, na altura da Avenida Paulista, quando a redação me chamou: ‘Corre para a Praça da Bandeira que está ocorrendo um incêndio grande. Estávamos eu, o motorista e o operador”, relembra.
“De longe já deu para avistar a fumaça”.
“Conseguimos chegar bem na frente da entrada principal do Edifício Joelma, que era a entrada dos carros. Estacionamos na ilha central e conseguimos colocar nossa viatura [o carro da Jovem Pan] ali. O incêndio estava acontecendo na altura do 12º andar, lá no alto. Naquele momento, só tinha uma viatura dos Bombeiros. Logo depois começou a chegar tudo o que você pode imaginar do Corpo de Bombeiros. E ficamos ilhados ali. Não pudemos mais sair dali. O calor era infernal porque estávamos separados uns 20 ou 30 metros do prédio em chamas, não mais do que isso. E dali fomos submetidos a uma prova da qual só tinha lido a respeito em uma obra de Dante [do escritor Dante Alighieri, de A Divina Comédia]. Era a antecâmara do inferno”, contou Parron. “Ficamos em um lugar privilegiado, mas que cobrou muito alto de cada um de nós do ponto de vista psicológico”, acrescentou.
O incêndio teve início antes das 9h e, por volta das 14h, já não existia mais. “Por volta do meio-dia boa parte havia sido extinta”, conta Parron.
Ajuda aos Bombeiros
No dia 1º de janeiro, o rádio não foi apenas um veículo de informação para a população sobre um dos maiores incêndios ocorridos no Brasil. Ele também auxiliou os Bombeiros no trabalho de resgate das vítimas.
Como as chamas eram muito fortes e altas, os bombeiros não conseguiam ter toda a visão sobre o prédio, que tem duas torres, com salas viradas tanto para a Rua Santo Antônio quanto para a Avenida 9 de Julho. Mas ouvintes da Rádio Jovem Pan – e que viviam na região – conseguiam avistar, do alto dos prédios onde viviam, as vítimas da tragédia no Joelma. E acabavam ligando na rádio para informar sobre a localização delas ou de novos focos do incêndio.
“Um ouvinte da emissora estava em um prédio, lá para o lado da Praça Ramos, por ali. Ele ligou para a emissora e disse que estava de binóculo acompanhando [o incêndio]: ‘Olha, os bombeiros não estão tendo essa imagem. Para o lado da 9 de Julho, que é o fundo do prédio, na altura do oitavo andar, tem chamas aparecendo ali’. Aí eu informava o coronel Caldas [Hélio Barbosa Caldas, do Corpo de Bombeiros]. E colocamos no ar esse ouvinte com ele [coronel Caldas]”,contou.
“Também teve ligação de outro ouvinte, que estava ali em um prédio pelo Anhangabaú. E ele visualizou uma pessoa, uma mulher, que estava na janela, na lateral do prédio. Colocamos o Caldas de novo no ar. Os bombeiros colocaram a escada magirus e essa escada foi, foi, foi até onde esse camarada [ouvinte] foi orientando. Tinha muita fumaça. Debaixo você não via nada. Quem estava em um plano mais elevado conseguia ver [melhor]. Um sargento subiu [na escada magirus] e foi lá no alto. O prédio ainda estava em chamas. A distância do topo dessa escada para onde estava essa mulher era de cerca de um andar. E vimos o desespero dele em alcançar essa mulher. Ela despencou, caiu em cima dele. Eles rolaram pela escada, mas ele não a soltou. Eles se machucaram bastante”.
Além disso, a emissora também se tornou uma prestadora de serviços essencial para as famílias das vítimas. Era ela quem ia aos hospitais para coletar os nomes das vítimas do incêndio e informar os ouvintes sobre quem elas eram. “A emissora passou a ser referência para as famílias das vítimas. Elas não ligavam para o hospital. Ligavam para lá, para a emissora [para saber os nomes das vítimas]”.
No dia do incêndio, a Jovem Pan derrubou toda a sua programação para transmitir, ao vivo, diretamente do local do incêndio. A rádio não interrompeu a cobertura da tragédia nem mesmo para exibir A Voz do Brasil. “Veio um telegrama da Presidência da República informando que a emissora estava liberada de formar cadeia para a transmissão da Voz do Brasil”, contou o jornalista.
Trabalho árduo
Naquele dia, Parron permaneceu na frente do prédio consumido pelas chamas até às 23h, trabalhando ininterruptamente. Da redação, ele recebia mensagens pelo fone de ouvido para que tivesse calma e mantivesse a sobriedade.
“Não é fácil descrever [aquilo]. De vez em quando batia umas lufadas de vento e aquela fumaça preta se descortinava e deixava a gente enxergar a silhueta do prédio que já não tinha mais vidros, todos eles haviam explodido. E as pessoas nas janelas. É um pouco de exagero, mas você quase chegava a ver os olhos de desespero e os gritos de: ‘me salva, pelo amor de Deus’. E de vez em quando, um deles saltava, não resistia. Entre o fogo atrás e o precipício na frente, e aquele calor infernal, de vez em quando um despencava. Vinha para a morte silenciosamente. As pessoas se estatelavam na sua frente. Era um baque o barulho de um corpo caindo no asfalto de 20 andares. Você não esquece isso. Descrever aquilo tudo sem sucumbir à emoção, sem se desesperar, não é uma tarefa muito fácil. Não é para amadores. Tive a sorte de ter meus companheiros me acalmando”, contou ele, emocionado.
O trabalho dele, no entanto, não terminou ali. Por volta da 1h da manhã, o coronel Hélio Caldas o convidou a entrar no edifício, que havia sido consumido pelas chamas. “Eu entrei lá com ele, na parte que era do estacionamento. Havia muita fuligem. E ali acabei desabando, chorando, envergonhado. E ele me disse: ‘não tenha vergonha não. Nós também choramos. A lágrima foi a forma de pedir perdão para esses que não conseguimos salvar’”.
Jornalistas que já cobriram tragédias sabem que esse é um trabalho extremamente exaustivo e que exige muito do profissional. “[Quando cheguei em casa] não conseguia dormir. Não conseguia almoçar nem jantar. Foi algo que me marcou de tal maneira que determinados ruídos me lembravam a queda de um corpo. Uma coisa assombrosa”.
Passados 50 anos, Milton Parron ainda se lembra de muitos detalhes daquele episódio, embora queira esquecê-los. “Procuro esquecer este fato porque me maltrata muito ainda aquilo que vivemos”, disse, voltando a se emocionar.
“Pode parecer demagogia, mas ficou a tristeza de alguém que foi mero espectador e que não pôde fazer nada para, pelo menos, ajudar a salvar aquelas pessoas e para atenuar aqueles momentos de terror que viveram os que se salvaram e os que morreram. Me restou esse inconformismo. O que fiz foi cumprir uma missão e um trabalho ao qual me dediquei a vida inteira, e para o qual era e sou pago. Mas se eu pudesse dar o microfone e sair correndo para segurar aquelas pessoas nos braços, eu teria feito isso”.
A TV Brasil preparou um especial sobre os 50 anos do incêndio do Joelma, que vai ao ar no Caminhos da Reportagem, no dia 4 de fevereiro, às 22h