Multidões de trabalhadores informais, socialmente desprotegidos que passam a ser controlados, gerenciados e subordinados a empresas que formam oligopólios nos setores em que atuam. Este é o resultado do fenômeno da uberização, segundo a socióloga Ludmila Abílio, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP), que destacou como característica desse modelo o trabalho sob demanda.
O motorista Jonas Eduardo Ferreira começou a trabalhar por meio de aplicativos de transporte após demissão em 2020, primeiro ano da pandemia. “Eu sempre trabalhei CLT [formalizado] minha vida toda, na pandemia por falta de emprego CLT eu tive que migrar para o autônomo, que seria o aplicativo.”
“Como a gente não tem registro, quando fica doente, o carro quebra, alguém da família precisa de você, como é que faz? Não faz. Porque a gente tem que fazer nosso próprio salário, nosso próprio 13º, nossas próprias férias, a gente tem que se programar pra isso. É o que eu tento fazer, eu sempre tento deixar um dinheirinho reservado para essas horas”, contou Ferreira.
Para fazer jus à aposentadoria, o trabalhador tem contribuído ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) como Microempreendedor Individual (MEI), mas reforçou que não há outras garantias trabalhistas. “Minha aposentadoria eu penso em tentar juntar um dinheirinho, que é difícil também, e pagando a MEI. Fora isso, não temos garantia nenhuma.”
Em contraposição a esse modelo, cientistas trabalham em uma solução prática. A advogada Paula Freitas, coordenadora da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir), fez parte de um grupo que trabalhou na construção de uma plataforma que tenta mudar o foco dos contratos das empresas para o trabalhador autônomo controlado por plataformas digitais, permitindo a regulação dos direitos para pessoas com múltiplos empregos.
Neste 1º de maio, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) completa 80 anos. A legislação foi criada pelo Decreto-Lei 5.452 de 1943 e sancionada pelo presidente Getúlio Vargas, durante o Estado Novo. A CLT unificou a legislação trabalhista existente no país até então. Neste marco, a Agência Brasil publica reportagem especial que retoma os antecedentes históricos para a conquista desses direitos, as mudanças ao longo do tempo e o atual cenário do Mundo do Trabalho, especialmente diante da digitalização.
Alternativa
A plataforma Integra Brasil proposta pelo Remir poderia ser utilizada para gerenciar horas trabalhadas e calcular os valores que cada empresa deveria arcar em relação aos direitos trabalhistas. O projeto surgiu como resultado do doutorado de Freitas, coordenadora da rede, e pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“A nomenclatura [relações de trabalho ou trabalhadores gerenciados por meio de plataformas digitais] é importante porque estabelece um fundamento de que essas relações de trabalho são firmadas com empresas que exploram setores tradicionais da economia como, por exemplo, da entrega e também de motorista, transporte de passageiros, entretanto, no modelo de negócio, elas organizam a produção, o processo de trabalho, incorporando plataformas digitais.”
Ela avalia que é um modelo de negócio novo, em que a organização da força de trabalho é feita dos aplicativos, que são essas plataformas digitais, o que difere do funcionamento do trabalho tradicional na indústria ou mesmo no setor de serviços.
“O regime jurídico que a gente reconhece é o vínculo de emprego, porém com uma nova reconfiguração, porque não é mais o vínculo de emprego para um empregador, mas é o vínculo de emprego para multiempresas. E isso acaba trazendo uma perspectiva de que a gente tem que manter os direitos trabalhistas, tem que manter a proteção social e do trabalho como fundamento, tal como a CLT já pregava desde a sua fundação, mas adaptando a essa realidade”.
A proposta é que essa adaptação seja feita considerando a soma dos tempos de atividade do empregado para as múltiplas empresas e dividindo os custos sociais e do trabalho conforme o tempo que ele efetivamente atuou para cada empresa.
“Para que se possa fazer essa contagem, formalizar esse trabalho e garantir a fiscalização do trabalho, a ideia que a gente traz é de fazer uma plataforma pública e governamental, a Integra Brasil, que espelha as informações das atividades realizadas e que integre essas informações.”
Para o motorista Jonas Ferreira, uma plataforma nesses moldes já deveria estar em funcionamento, pois a modalidade de motorista por aplicativo se estende por anos. No entanto, ele acredita que a garantia de direitos para a categoria ainda está distante. “Se nós tivéssemos um registro em carteira, mesmo que fosse um salário mínimo, já estaria bom, porque a gente teria os benefícios, mas nesse caso do aplicativo não tem benefício. Você trabalha o dia que você quer, o dia que você pode, você faz seu horário. A vantagem é essa, a desvantagem é que não tem garantia nenhuma.”
Em relação ao desejo das pessoas de se verem livres da figura do patrão que pode levar à adesão às plataformas, Ludmila Abílio, acrescenta que alguns trabalhadores, no período pré-uberização, viram na profissão de entregadores uma melhor remuneração e uma relação diferente com a cidade diferente. “Você está o tempo todo no espaço público ali e é muito precário, mas ao mesmo tempo traz uma sensação de liberdade. O trabalhador acha interessante. Mas já era [uma condição de trabalho] muito degradada.”
Trabalho por demanda
Para a socióloga, a uberização não é necessariamente sinônimo de trabalho por plataformas digitais, mas um processo mais amplo e que está em curso há décadas no mundo do trabalho.
“A questão central da uberização se refere à transformação de nós, trabalhadores, em trabalhadores sob demanda, que já não contam mais com nenhuma garantia sobre quanto tempo precisam trabalhar para ganhar o mínimo necessário para sua sobrevivência, sobre qual o valor da sua hora de trabalho, sobre como o trabalho é distribuído”, disse Abílio.
A socióloga vem pesquisando a uberização como nova organização do mundo do trabalho e mapeou como se dá a precarização nesse modelo: longas jornadas, sem direito a férias, descanso semanal ou licença médica. “A gente pode prever que isso é um processo, que a gente olha pro motoboy hoje e entende, mas que está atravessando o mundo do trabalho como um todo.”
A contratação de pessoas jurídicas, avalia a socióloga, já era um primeiro passo do que viria a ser a definição da uberização. “Já era um símbolo de que ‘olha, tem algo acontecendo aqui que está se criando novas formas de subordinação do trabalhador’”.
“A reforma trabalhista vai modificar o conceito de trabalho formal, então por exemplo, hoje, você tem essa categoria chamada emprego intermitente que é você ser um trabalhador formal, mas viver como um trabalhador sob demanda. Por isso que eu gosto de falar que a uberização não é algo que começou com as plataformas digitais, ela é um processo que está em curso há décadas no mundo do trabalho”, disse.