“Bem-vindo à casa dos campeões”. A mensagem no portal na entrada da cidade queniana de Iten pode soar prepotente, mas ela é apenas sincera quando se pensa em provas de longa distância. Nas últimas dez edições das seis principais maratonas do planeta – Tóquio (Japão), Berlim (Alemanha), Londres (Reino Unido), Boston, Chicago e Nova Iorque (todas nos Estados Unidos) – um atleta do Quênia esteve no topo do pódio, em média, de seis a sete vezes em cada uma delas.
“Eles [quenianos] treinam em grupos e se ajudam o máximo possível. Querem ver um ao outro bem e fazer parte dessa história. Encaram cada competição como se fosse a última oportunidade da vida e, quando estão treinando, parece que estão escutando o hino nacional. Por mais que estejam cansados, não desistem nunca. E têm a melhor estrutura natural do mundo, praticamente, que é a altitude [2,4 mil metros acima do nível do mar]”, descreve o corredor Daniel Ferreira do Nascimento à Agência Brasil.
O paulista de 22 anos fala com conhecimento de causa. Ele está em Iten desde o último dia 6 e lá permanecerá treinando até o embarque para a Olimpíada de Tóquio. Em maio, o jovem passou duas semanas no Quênia, acompanhado do técnico Neto Gonçalves, preparando-se para a primeira maratona da carreira, em Lima (Peru). No dia 23 daquele mês, Daniel não só venceu a prova alusiva aos 200 anos da independência peruana como atingiu o índice olímpico, com a melhor marca entre os brasileiros, correndo 42 quilômetros em 2h09min04. Além dele, Daniel Chaves e Paulo Roberto de Almeida Paula também competirão na capital japonesa.
Nada mal para quem, há um ano e quatro meses, em entrevista anterior à Agência Brasil, sonhava com a estreia olímpica somente em 2024, nos Jogos de Paris. É verdade que, de lá para cá, houve o adiamento da Olimpíada para 2021, por causa da pandemia do novo coronavírus (covid-19). Na época, Daniel tinha acabado de alcançar marca para representar o Brasil no Mundial de Meia Maratona (21 km) ao conquistar a Meia Maratona Internacional de São Paulo, que foi transmitida ao vivo pela TV Brasil.
“Sinceramente, não esperava obter o índice para Tóquio. Naquela ocasião, o tempo era muito curto. Quando os Jogos foram adiados, passei a acreditar mais. Foi tudo passo a passo. Competi no Troféu Brasil, no Mundial de Meia e aquilo foi fortalecendo. Faltando pouco de novo para fechar [a janela para obter] o índice, o pessoal falou: ‘Daniel, vai para a maratona que você vai ser dar bem’. Apareceu um patrocinador que propôs a ida ao Quênia. Quando cheguei lá, fiquei ainda mais motivado”, recorda o maratonista.
“[Ir ao] Quênia é uma coisa que desejo para todo mundo, não só para quem é atleta. Você aprende sobre simplicidade e humildade. Um ajuda o outro. Eles vivem de alimentação natural, então, o que plantam, eles vendem ou utilizam para consumo. A tradição deles é bíblica e eles respeitam bastante, primeiro, as leis de Deus e depois as leis dos homens. Aprendi muitas coisas”, completa.
Acostumado a treinar sozinho em Bauru (SP), Daniel pôde compartilhar, na primeira estada em Iten, o dia a dia com fundistas que, segundo ele, costumava ver apenas por vídeo e ter uma dimensão do resultado das atividades. Rotina que, no retorno ao Quênia, é ainda mais intensa e decisiva.
“Antes dos Jogos, a maioria dos atletas [quenianos] se prepara na Europa, fazendo trabalhos com os treinadores de lá, de fortalecimento, porque no Quênia é difícil ter essa estrutura. Lá é tudo na base do conhecimento e da sabedoria. Só que agora é o momento olímpico, então, para cada lado que eu olhar, terá um adversário meu da maratona. Perto de onde estou vejo o [Eliud] Kipchoge correndo para lá e para cá [risos]”, conta o brasileiro, em alusão ao maratonista que é o atual campeão olímpico e recordista mundial.
A empolgação atual contrasta com a sensação vivenciada por Daniel após a Corrida Internacional de São Silvestre de 2018, quando deixou a prova com dores no tendão de aquiles. Apesar de já ser uma das promessas do atletismo brasileiro, o jovem desistiu do esporte e voltou a trabalhar na roça, como ele mesmo diz, em Paraguaçu Paulista (SP), onde nasceu. Meses depois, porém, retomou os treinos a tempo de ser o brasileiro mais bem colocado da São Silvestre seguinte, com o 11º lugar.
“A principal experiência daquele período na roça foi aprender a valorizar o que se quer e ama fazer. Às vezes, o cara adota uma profissão, mas é apaixonado por outra coisa. Graças a Deus, consegui me encontrar e isso deixou meu psicológico forte. Quando você começa a ganhar provas, fica mais motivado e tem que se embalar. Se você parar e ficar olhando para trás, não chega na frente. Um queniano, brincando comigo, disse que tenho que imaginar que sou uma Ferrari. Pode ver que o retrovisor da Ferrari é pequenininho. É justamente para nem olhar para trás”, reflete Daniel, que não vê a hora de colocar tanto aprendizado em prática em Tóquio.
“Eles [quenianos] são de carne e osso como a gente, com dias bons e ruins. Vou me preparar e ter coragem de ir para cima. Se der certo ou errado, o aprendizado será igual, pois a vida é assim”, conclui.