Sob Bolsonaro, Brasil se afasta de meta de erradicar pobreza

Número de brasileiros na pobreza aumentou em 10 milhões entre 2020 e 2021, representando agora quase 30% da população. Especialistas criticam foco eleitoreiro do Auxílio Brasil e falta de propostas na campanha.

O mundo não conseguirá cumprir a meta estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) de erradicar a pobreza até 2030 — e o Brasil apresenta retrocessos sociais que também vão nesse sentido. Esse é o panorama 30 anos após a ONU instituir o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, em 17 de outubro de 1992.

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O prognóstico negativo foi confirmado em relatório divulgado no início deste mês pelo Banco Mundial. E encontra eco nos números, segundo os quais a pandemia de covid-19 causou o pior momento desde que os dados vêm sendo monitorados, nos anos 1990, empurrando mais de 70 milhões de pessoas para a linha extrema em 2020. E os prognósticos, com a guerra na Ucrânia e a inflação decorrente do conflito, indicam que esse contingente ficará ainda maior.

De acordo com a instituição, 719 milhões de pessoas atualmente subsistem com menos de 2,15 dólares por dia — o que significa pobreza extrema. E a projeção é que até o fim deste ano 115 milhões a mais estejam nesse limiar da fome.

A linha da pobreza teve o valor mínimo reajustado pelo banco, tendo em vista o aumento dos custos em escala global. Antes, era de 5,50 dólares por dia. Agora é de 6,85. Considerando essa faixa, uma em cada cinco pessoas do mundo está abaixo da linha da pobreza.

O balde de água fria no sonho de acabar com a fome até 2030 tem sua explicação justamente no clima de otimismo dos anos 1990.

“Existia naquele contexto de final de século a expectativa de que o fortalecimento das democracias no pós-Guerra Fria fortaleceria os mercados e promoveria a redução da miséria, através da globalização e do neoliberalismo. Essas pretensões acabaram não acontecendo. Ao contrário, acabaram criando mais desigualdade pelo mundo”, avalia o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Brasil: 30% do país na pobreza

No Brasil, o cenário é preocupante. “A queda [dos índices de pobreza] no Brasil foi até 2015”, aponta o economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais FGV Social.

Ele se baseia em dados que apontam que, no fim do ano passado, havia um recorde do contingente de pobres no país desde o início da série histórica — 62,9 milhões de brasileiros, ou quase 30% da população, vivendo com renda domiciliar per capita igual ou inferior a R$ 497 por mês (5,50 dólares por dia). O número significa 10,1 milhões pessoas a mais do que no ano anterior, 2020.

O levantamento realizado pelo FGV Social com base nos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresenta um quadro nítido e preciso do que ocorreu nos últimos dez anos, início da série histórica. Em 2012, eram 54 milhões pobres no Brasil, número que caiu para 47,6 milhões em 2014, quando voltou a subir. Em 2018, eram 55,1 milhões. E 2021 terminou com o recorde histórico de 62,9 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza.

Para Ramirez, nesta conta é preciso acrescentar, além do cenário global, os cortes de programas sociais durante os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, ou mesmo a não atualização compatível dos valores destinados a eles. Mas ele também observa que como essas estatísticas se baseiam no ganho diário em dólar, a desvalorização da moeda brasileira significa “o aumento da quantidade de pessoas que entram” nessa desfavorável lista.

Avanços e retrocessos

Segundo Neri, nos últimos 30 anos, é possível destacar uma série de esforços históricos para a redução desse cenário. Nos anos 1990, havia a famosa campanha empreendida pelo sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, com sua organização Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

Em 2001, no fim do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, foram implementados os programas Bolsa-escola e Bolsa Alimentação, precursores dos modelos de transferência de renda.

O auge da luta contra a pobreza extrema viria, contudo, na gestão posterior, sob o comando do petista Luiz Inácio Lula da Silva, com o programa Fome Zero e a instituição do Bolsa Família.

“O compromisso [de erradicar a pobreza] veio com o governo FHC, com algumas bolsas, e conseguiu uma expansão eficaz nos governos Lula e Dilma, quando a fome foi de fato extirpada do país e houve um compromisso com a empregabilidade, permitindo que o brasileiro pudesse ter três refeições por dia”, comenta Ramirez. “Mas isso ainda não significou o fim da pobreza.”

O Bolsa Família unificou e ampliou os programas de transferência de renda então existentes. Em 2014 quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou que o Brasil havia saído do mapa da fome, o programa foi apontado como um dos responsáveis pelo feito.

O programa beneficiava 14,7 milhões de famílias em 2021, quando foi extinto pela gestão Jair Bolsonaro. Em seu lugar, foi implementado o Auxílio Brasil, uma das principais bandeiras eleitoreiras do candidato à reeleição.

Neri avalia que “a política social de cunho assistencial está crescendo em dinheiro, mas perdendo em eficácia operacional”, com o domínio de uma “visão oportunista eleitoral e pouco foco na superação da pobreza estrutural”. “Anda para trás em relação ao que o Bolsa Família já fazia.”

“Hoje [o programa Auxílio Brasil] tem foco eleitoreiro mas provavelmente não [funcionará] depois das eleições”, considera o economista.

Ele aponta que há gargalos bastante problemáticos, a começar porque o benefício foi aprovado graças a um Projeto de Emenda Constitucional (PEC), apelidado de “Kamikaze”, que colocou o Brasil em estado de emergência até o fim deste ano. Ao contrário do Bolsa Família, portanto, o Auxílio Brasil não é um programa com previsão de continuidade.

Outra questão que vem sendo trazida de forma recorrente por estudiosos é que o Bolsa Família fazia parte de um conjunto de políticas sociais implementadas pelo governo federal. Era condicionado à frequência escolar e vacinação em dia das crianças e caminhava em paralelo com outras medidas, como o projeto Minha Casa Minha Vida, de habitação popular, e melhorias no acesso ao ensino superior, com cotas e programas de financiamento. Também foi um período em que havia ganho real do salário mínimo, com reajustes anuais acima da inflação.

Discussão politizada

Neri crê que no momento qualquer solução fica difícil de ser avaliada, pois “a discussão está muito politizada e volúvel no Brasil”. No cenário de campanha eleitoral, o vale-tudo das promessas não permite enxergar o que vem por aí.

“Bolsonaro implementou um pacote de benefícios no fim do mandato, mas não há nenhuma garantia de que serão mantidos ou que teremos orçamento para mantê-los”, alerta Ramirez. “Lula carrega o histórico de ter liquidado a fome no Brasil, mas em sua campanha não fica nítido de onde viriam os recursos [para implementar programas do tipo].”

“Infelizmente, esta campanha eleitoral é uma das mais pobres em termos de propostas políticas. Pouco demonstram o que vai ser feito [para erradicar a pobreza] ou como vai ser feito”, lamenta o sociólogo. “As pautas morais ganharam fôlego porque debater pobreza tem tido pouca repercussão entre eleitores em um mundo em que o sensacionalismo e os factoides ganham destaque.”

Fonte: Deutch Welle